Sic itur ad astra

Passam hoje 50 anos sobre o 25 de Abril e 1 ano sobre a morte do meu avô, Carlos Armando de Paiva Rodrigues.

Muito poderia escrever sobre a história da vida do meu avô, que desde muito cedo foi pautada por difíceis provações e árduas lições que fizeram dele um grande homem. Tudo o que conseguisse reduzir a escrito, porém, não só não faria justiça à sua magnanimidade e nobreza de carácter, como desonraria a sua maneira de ser caracterizada pela reserva e discrição.

Limito-me, assim, volvido um ano sobre a sua morte, a reflectir sobre a sua importância e influência na minha própria vida. Todos os defeitos que possuo são inteiramente meus, mas o melhor de mim vem do meu avô. Tal como Marco Aurélio, também eu “Aprendi com o meu avô o carácter e a rectidão” e tive, aliás, a honra e o privilégio de com ele aprender muito mais.

Foi o meu avô quem fomentou em mim, desde muito cedo, o gosto pela leitura e o interesse pela política. Foi ele quem me iniciou na reflexão filosófica à maneira de Aristóteles, de forma peripatética, nos nossos muitos passeios em que me ensinou praticando um método dialéctico e conversacional que fácil e rapidamente atravessava vários assuntos, obrigando-me a pensar afincadamente para poder avançar como seu discípulo. Com o meu avô aprendi a distinguir os homens bons dos maus e compreendi que ser bom é ser justo, tendo o meu sentido de justiça sido gerado directamente pelo dele. Ao vê-lo lutar contra as injustiças que cometeram contra ele, compreendi as implicações práticas da afirmação de Albert Camus, em O Homem Revoltado, de que “É melhor morrer de pé do que viver de joelhos”. Devo o que sou hoje, também, à ética de trabalho de que ele sempre foi um exemplo ímpar.

Foram tantas as conversas que tivemos acerca dos mais diversos temas, que, para além de meu avô, foi o meu melhor amigo e o meu primeiro e principal mestre. Porque como também escreveu Marco Aurélio, “O aperfeiçoamento da leitura e da escrita requerem um mestre. A vida requere-o mais.” E o meu avô foi o melhor mestre que poderia ter tido.

Uma das suas mais importantes lições, transmitida ao longo de décadas, foi a respeito da morte. Ouvi-lhe frequentemente a expressão “Até amanhã, se a Providência deixar” e habituei-me a ouvi-lo ecoar a sabedoria dos clássicos gregos e romanos sobre esta questão. Praticou, no fundo, os ensinamentos de Montaigne em “Que filosofar é aprender a morrer”: “É incerto onde a morte nos espera; vamos esperá-la em todos os lugares. A premeditação da morte é a premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a ser escravo. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e constrangimento. Não há nada de mal na vida para o homem que compreendeu bem o facto de que ser privado da vida não é um mal.”

Ao longo dos anos, ouvi-o falar recorrentemente deste tema com a naturalidade e serenidade que apenas está reservada aos grandes homens. Grandeza esta que ficou patente na hora da partida, após várias semanas de uma luta estoica que foi a maior carta de amor que o meu avô me escreveu e à Ana, a quem generosa e carinhosamente tratava por neta. Quatro dias após ter estado presente no nosso casamento, quis a Providência levá-lo na madrugada do dia 25 de Abril de 2023, em Santarém, precisamente a cidade de onde saiu a coluna de Salgueiro Maia pela qual o meu avô passou às primeiras horas da manhã do dia 25 de Abril de 1974, na Baixa de Lisboa.

Deixar-nos no Dia da Liberdade foi o último acto poético de um homem livre, bom e justo, que viveu como pensava, casando a honra com a inteligência e a justiça com a integridade, praticando o bem e evitando o mal.

Em todos os dias 25 de Abril, o meu avô saia à rua com o cravo na lapela. Hoje, por ele, pela democracia e pela liberdade, lá estarei a fazer o mesmo, na Avenida da Liberdade.