A procissão ainda vai no adro

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Entre os vários modelos de análise de negociações internacionais, merece particular destaque o modelo provavelmente mais aproximado à realidade, proposto, em 1982, por Zartman e Berman, no clássico The Practical Negotiator. Este modelo, que se mantém actual, ainda que revisto e actualizado por G. R. Berridge, é simples e permite evitar resvalar para um dos dois extremos que se têm manifestado nos últimos dias, a celebração efusiva e a desvalorização do que Trump alcançou na já histórica cimeira de Singapura.

Resumidamente, o modelo prevê a existência de 3 fases em qualquer negociação internacional: a pré-negociação, a negociação e a pós-negociação/follow-up. A fase da negociação (ou around-the-table negotiations), por sua vez, subdivide-se em duas fases, a da fórmula e a dos detalhes. A fórmula é, essencialmente, um conjunto de ideias simples e abrangente que enquadra a questão a ser negociada, estabelecendo uma percepção partilhada sobre esta e uma estrutura cognitiva de referentes para uma solução ou um critério ou ideia de justiça a concretizar por via da negociação. No caso do acordo assinado em Singapura, a fórmula resume-se à ideia de “security guarantees for complete denuclearization“, na medida em que Trump promete criar condições de segurança para a Coreia do Norte e esta, por seu turno, se compromete a desenvolver esforços no sentido da total desnuclearização, algo que muitos analistas não consideram uma possibilidade verosímil.

Agora compete às equipas de negociadores darem conteúdo prático aos compromissos, na fase dos detalhes, aquela em que se estabelecem medidas e passos concretos. Ainda vai demorar algum tempo até percebermos se a Coreia do Norte irá realmente avançar no sentido da desnuclearização (algo que até só poderá ser perceptível na fase de pós-negociação), pelo que resta-nos esperar para ver como se desenvolverão as negociações, não sendo despiciendo assinalar que o modelo é meramente uma ferramenta analítica, sendo possível, na prática, que as fases se sobreponham e também que se regrida de uma fase posterior para uma anterior.

Sublinhe-se que isto não retira valor à cimeira de Singapura. O que Trump alcançou encontra-se fundamentalmente no domínio do simbólico, mas o encontro com Kim Jong-Un foi um passo essencial para o eventual desbloqueio da situação na península coreana. Do acordo assinado não se poderia esperar algo mais que uma manifestação de intenções generalistas, mas não se pode desvalorizar o facto de Trump ter sido o primeiro presidente norte-americano a sentar-se à mesa das negociações com um líder norte-coreano, nem a forma como conseguiu criar as condições para o encontro, recorrendo a uma retórica invulgar num presidente dos EUA. Se a retórica de Obama, que nos deixou um mundo certamente mais inseguro que aquele que tinhamos em 2008, mereceu um Prémio Nobel da Paz, o que premiará, gostando-se ou não da sua abordagem algo primária, a actuação de Trump no domínio da desnuclearização?

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A direita, a esquerda e a minha liberdade

Tenho lido críticas a uma certa direita trauliteira que não tem – nem remotamente – o nível intelectual e cultural de verdadeiras referências direitistas. De facto, do Observador às redes sociais, passando pelo CDS, a direita portuguesa tem-se tornado um espaço pouco recomendável, porque dominado por caceteiros, hiper-moralistas com telhados de vidro e que não passam de aprendizes de Maquiavel, muito economês, liberalismo de pacotilha e pouca ou nenhuma capacidade de pensamento e reflexão e de diálogo moderado e civilizado com outras perspectivas filosóficas, ideológicas e partidárias. Dir-me-ão que os jornais, os partidos e as redes sociais não são universidades ou think tanks, mas quer-me parecer que o grau de indigência intelectual não necessitava de ser tão elevado. Trata-se, tomando emprestada uma expressão, de uma direita analfabeta, uma direita que pouco ou nada lê, permeada por um dogmatismo impressionante para quem, como eu, subscreve o decálogo liberal de Bertrand Russell.

Não que a esquerda seja necessariamente melhor. Com efeito, continuamos a ter, como assinala José Adelino Maltez, “A direita e a esquerda mais estúpidas do mundo”, que “são como aquelas claques da futebolítica que afectaram socrateiros e continuam a infestar certos coelheiros, segundo os quais quem não é por mim é contra mim, porque quem não é por estes é a favor dos outros. Eu continuo a seguir a velha máxima de Unamuno: o essencial do homem ocidental é ser do contra. Para poder ser qualquer coisinha…”

Na verdade, a direita que habitualmente critica a esquerda por esta se alcandorar a uma certa superioridade moral, mimetiza esta atitude, o seu modo de pensar e comportamentos. Ambas reflectem aquilo a que me referi como a política do dogmatismo e a política da utopia, ambas alicerçadas no que Oakeshott chamava de política racionalista ou política do livro, da cartilha ideológica. Afinal, como também há tempos escrevi, é muito fácil ser libertário ou comunista: “Não por acaso, para o esquerdista, o Estado é o principal instrumento a utilizar e o mercado é o principal inimigo a abater, enquanto para o libertário é precisamente o contrário. Um pensador conservador pensa a partir do real, das circunstâncias práticas, sem deixar de criticar a sociedade em que vive, encontrando no Estado e no mercado diferentes esferas da vida humana, ambas necessárias a uma sociedade livre e próspera; um pensador esquerdista ou um libertário pensam a partir de um qualquer ideal e clamam contra tudo o que não se conforma a esse ideal. O racionalismo dogmático ou construtivista do esquerdista ou do libertário que defendem um valor acima de todos os outros em qualquer tempo e lugar, independentemente das circunstâncias práticas, consubstancia a política dos mentalmente preguiçosos.”

Talvez valha a pena relembrar uma célebre passagem de Alçada Baptista, para quem “Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.”

Ao que eu acrescento que conservadores não dogmáticos, que entendam a dimensão pluralista e flexível da reflexão e da praxis política a que alude Kekes, também já reparei que há muito poucos. Há muito poucas pessoas, em Portugal, que, atentando especificamente no domínio do político, compreendam o que Oakeshott transmitiu, em On Being Conservative”, ao considerar que a disposição conservadora não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo,” que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador.”

Tendo eu passado por uma escola, o ISCSP, onde, citando Adriano Moreira, aprendi “a olhar em frente e para cima”, tendo como referências mestres como José Adelino Maltez e Jaime Nogueira Pinto, tendo ao longo da última década lido e reflectido sobre diversos autores, como Hayek, Popper, Oakeshott ou Kekes, ou seja, como alguém que privilegia o mundo intelectual sobre o político ou partidário, torna-se particularmente penoso não só constatar tudo o que acima escrevi, mas também continuar a compactuar com este estado de coisas através da minha condição de militante do CDS. Por tudo isto, solicitei hoje a minha desfiliação. Porque mais importante ainda do que ser do contra, é ser livre, e porque como escreveu Ortega y Gasset, “A obra intelectual aspira, com frequência em vão, a aclarar um pouco as coisas, enquanto que a do político, pelo contrário, costuma consistir em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: ambas são, com efeito, formas da hemiplegia moral.”