O regresso do fim das ideologias

Hoje escrevo no Observador sobre como a guerra na Ucrânia nos coloca perante um retorno da tese do fim das ideologias. Aqui fica um excerto:

Nesta conjuntura internacional, parece-nos importante questionar se não estaremos também a assistir ao regresso da tese do fim das ideologias, desta feita com base na dicotomia entre democracias liberais e regimes autoritários. Esta já era uma característica da política internacional pós-Guerra Fria, mas a interdependência económica entre as democracias liberais e, principalmente, a Rússia e a China, levou o Ocidente a lidar com uma certa bonomia com as interferências e tentativas de subversão das suas sociedades abertas. Agora que as aparências caíram por terra, somos todos, nas democracias liberais, convocados para um confronto político e ideológico. Com raras excepções, as divergências entre a esquerda e a direita parecem dar lugar a uma coesão social que se revela no apoio à Ucrânia e na consciência de que estamos perante uma ameaça existencial ao modo de vida demoliberal. A política internacional volta a definir as convergências e cisões ideológicas. O século XXI começa agora.

Rússia vs. Ucrânia: Uma Análise Política, Estratégica e Internacional

Hoje, pelas 18:00, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa organiza um webinar sobre a situação na Ucrânia. Serão oradores os Professores José Maltez, Sandra Balão e Marcos Farias Ferreira.

A participação, via Zoom, é livre, mas sujeita a inscrição prévia aqui. Juntem-se a nós na análise a este momento delicado da segurança europeia e mundial.

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A resistência ucraniana e o bluff de Putin

Hoje, no Observador, um artigo meu com uma análise neo-realista sobre a resistência ucraniana e o bluff de Putin a respeito da utilização de armas nucleares.

Importa ainda salientar que, desde o início do conflito, subsiste aparentemente um motivo para as potências ocidentais não intervirem directamente com forças militares convencionais no teatro de guerra: a posse de armas nucleares por parte da Rússia. É o receio de uma escalada conducente a uma guerra nuclear que está nas mentes dos decisores políticos, bem como nas de muitos comentadores, especialmente após a ameaça, por Putin, de consequências nunca vistas na nossa história. Ora, a ameaça implícita de utilização de armas nucleares por Moscovo não é credível. Primeiro, porque, como mencionado acima, os Estados são actores racionais e estratégicos que têm como objectivo primário a sua própria sobrevivência e as armas nucleares só são úteis para efeitos ofensivos se apenas um dos lados num conflito as detiver. Segundo, porque retém validade a brilhante análise de George Kennan no seu Long Telegram (1946) e em The Sources of Soviet Conduct (1947), que esteve na génese da doutrina da contenção do expansionismo soviético. Conforme salientou o eminente sovietólogo, o Kremlin é “Impermeável à lógica da razão e altamente sensível à lógica da força. Por esta razão, pode-se retirar facilmente – e geralmente fá-lo quando encontra uma forte resistência em qualquer ponto.” Assim foi aquando das crises dos Estreitos Turcos e do Irão, logo em 1946, mas também no restante período da Guerra Fria, quando os EUA já não detinham o monopólio das armas nucleares.

Isto significa que o cálculo da utilização de armas nucleares não é tão linear e automático como muitos comentadores e políticos pensam, talvez influenciados pelo clássico de Stanley Kubrick Dr. Strangelove. Trata-se de uma tecnologia eminentemente defensiva e quando dois lados em confronto a detêm, ao invés de poder contribuir para uma escalada, pode precisamente levar ao término das hostilidades. Quando a sobrevivência de um dos lados é colocada em causa pelo recurso a esta tecnologia, devido à garantia de retaliação, deixa de fazer sentido utilizá-la – era nisto que assentava a doutrina da Mutual Assured Destruction (MAD).

Putin está ciente disto e acredita que os Estados ocidentais não intervirão militarmente na Ucrânia devido ao receio de uma escalada para um confronto nuclear. Talvez esteja na altura de o Ocidente ser imprevisível e surpreender Putin com o que para este é improvável, revelando o seu bluff. Seria um golpe de mestre que rapidamente o obrigaria a suspender as hostilidades e a sentar-se à mesa das negociações antes que o seu regime colapse.

A Ucrânia é aqui

Escreveu Montesquieu que “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites”. É assim tanto no plano doméstico dos Estados como na política internacional, onde, na última década, um Ocidente em turbulência não tem conseguido lidar devidamente com o bully-in-chief de uma cleptocracia apostada em fragmentar as democracias liberais. Como se não bastasse a inépcia dos líderes Ocidentais, o chefe do Kremlin ainda é aplaudido à saciedade por idiotas úteis beneficiários do conforto e das liberdades da civilização ocidental e da geografia que lhes calhou em sorte. Quem louva a violação, por uma potência revisionista e agressiva, dos dois princípios basilares da ordem vestefaliana, a soberania e a não-ingerência, ignora a história (mesmo que Putin não seja Hitler ou Estaline) e não compreende que o expansionismo russo ameaça a ordem internacional sobre a qual repousa o nosso modo de vida. A Ucrânia é aqui ao lado e não colocar limites a Putin é franquear ainda mais as portas da segurança europeia e transatlântica.