Com o spin em alta rotação a presentear-nos com leituras e interpretações dos resultados eleitorais para todos os gostos, observo que continuamos a ser uma democracia deficitária, com cidadãos menorizados a serem exclusivamente chamados a ratificar o que os directórios partidários decidem à porta fechada. Assim se explica que muitos dos eleitos do PS e do PSD sejam ilustres desconhecidos e/ou meros caciques e que as respectivas listas tenham sido encabeçadas por péssimos candidatos – por mais que os seus correligionários nos queiram convencer do contrário. Com a honrosa excepção do Livre – não obstante o resultado das suas eleições primárias ter desagradado a direcção -, o recrutamento político continua a fazer-se em circuito fechado, e para os partidos do centrão as eleições europeias servem para pouco mais do que promover alguns boys and girls e/ou incómodos reais ou potenciais para o chefe. Infelizmente, os nossos políticos de vistas curtas não sabem fazer melhor. Por último, destaco a descida do Chega e a vitória da Iniciativa Liberal, o único partido que cresceu quer em termos absolutos quer em percentagem e, portanto, o único, para além do PS, que se pode afirmar como vencedor nestas eleições.
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Da sobrevalorização da comunicação na era do vazio
A sobrevalorização da forma sobre a matéria, do método sobre a teoria, da comunicação sobre a substância, é sintomática de sociedades permeadas pela superficialidade e efemeridade associadas à modernidade líquida. Nesta, com a relevância assumida pela “empresa” e pelo “mercado” em resultado da globalização económica a manifestar-se na forma como a governação política é encarada e exercida, o poder político vê-se na contingência de poder mudar, frequentemente de modo autoritário, sem uma discussão alargada, características identitárias patentes nas formas comunicacionais, como se um Estado ou um Governo fossem uma qualquer empresa privada. Tratando-se de alterações cosméticas a que subjazem disputas estéticas e políticas, não existe, neste ambiente social e cultural, qualquer possibilidade de arbitrar tais contendas por referência a critérios racionais e comunitariamente partilhados, com as preferências a residirem somente em gostos individuais. O que é feito encontra justificação apenas na força, na vontade de quem temporariamente exerce o poder político. Quem vier a seguir pode sempre fazer como quem veio antes, voltando a mudar a identidade visual, que com tantas variações acaba por erodir o seu próprio significado e, consequentemente, a identificação da comunidade política com o Governo. Nesta matéria, os diferentes governos têm-se comportado como um novo conselho de administração que opera um “rebranding” para se distinguir do anterior. Que as elites governantes não se apercebam do processo de desinstitucionalização do poder político associado a tal comportamento, não é surpreendente. Mas nem assim tudo isto deixa de ser lamentável.
Na hora da demissão de António Costa
Naturalmente, estamos agora focados na árvore e a pensar no que se seguirá, ou seja, se o Presidente da República, que convocou os partidos e o Conselho de Estado para os próximos dias, dará espaço a uma solução interna da maioria parlamentar do PS (com que legitimidade?), ou, o que é mais provável, dissolverá a Assembleia da República – isto numa altura de discussão do Orçamento do Estado para o próximo ano. O país político estará hoje especialmente agitado, num corrupio de telefonemas e especulação sobre cenários eleitorais, e muito provavelmente passará os próximos meses a fazer listas de candidatos a deputados à porta fechada – que os cidadãos são meramente chamados a ratificar nas urnas – e a preparar e conduzir a campanha eleitoral, onde mais uma vez o foco será nas lideranças políticas, como é timbre da personalização do poder político.
Mas talvez valha a pena olhar para a floresta. Nos últimos 23 anos, o PS foi governo durante 16. Dos seus 3 Primeiros-Ministros neste período, um saiu perante o “pântano político”, outro continua numa rocambolesca relação com a Justiça e é com esta que o terceiro inicia agora uma relação cujos contornos ainda desconhecemos. A isto acrescem ainda dezenas de casos de Ministros, Secretários de Estado, adjuntos, assessores e autarcas envolvidos em diversas suspeitas de corrupção e afins. Por mais “códigos de ética e conduta” e “estratégias nacionais de combate à corrupção” que sejam formulados, é inegável que Portugal tem um problema estrutural de corrupção e descrédito das instituições políticas, o que alimenta os populismos quer à esquerda quer à direita.
Na sua classificação das formas de governo Montesquieu explica que, quanto à sua natureza, existem três: a monarquia, a república (que pode ser mais aristocrática ou mais democrática) e o despotismo. Quanto ao princípio que anima cada forma, entendendo por tal o propósito que anima o povo, o que o faz actuar, considera que a república se fundamenta na virtude (amor à pátria e dedicação à causa pública), a monarquia na honra (baseada nos privilégios e distinções) e o despotismo no medo. O autor da fórmula final da separação de poderes admirava as repúblicas, mas considerava que a virtude cívica requer um elevado padrão moral, um espírito público por parte dos cidadãos que os motive a subordinar os interesses privados ao público.
Acontece que, como salienta Chandran Kukathas a respeito da teoria política de David Hume, “Não podemos depender da benevolência ou virtude dos actores políticos se queremos que a liberdade e a segurança das possessões sejam asseguradas”, pelo que “a única solução é ter uma constituição forte cujas regras gerais mantenham os grupos de interesse e indivíduos ambiciosos em xeque. São as regras e não os indivíduos que governam que asseguram a segurança e a liberdade da sociedade.”
No fundo, ecoa Cícero e Santo Agostinho, a propósito de quem Alan Ryan afirma que “[Cícero faz] da justiça a característica definidora de uma república que é realmente uma república, e antecipa a famosa observação de Santo Agostinho de que sem justiça um estado é simplesmente um grande gangue de ladrões: um estado corrupto não é uma comunidade. Não pode haver res publica se as instituições do governo são pervertidas para servir interesses privados. (…). Boas instituições protegem o interesse comum contra a erosão por interesses privados e evitam que os conflitos de interesses privados se tornem destrutivos.”
Enquanto comunidade politicamente organizada, temos evidentes problemas éticos, que não raro desaguam em problemas legais. Estes são particularmente notórios no PS porque a sua permanência durante longos períodos no poder acaba por potenciar vícios que conduzem à captura do Estado por determinados interesses privados e à erosão do interesse público. A forma de reduzir a elevada exigência moral colocada pela virtude cívica e levar a uma revalorização da causa pública é através do desenho institucional. Como também ensina Montesquieu, “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele” indo até onde encontra limites.
Por outras palavras, precisamos urgentemente de reformar o sistema político nas suas diversas componentes. Sobre isto, teci algumas considerações já há quatro anos no Observador. Talvez esta seja uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o que precisamos de fazer para melhorar a qualidade da nossa democracia liberal antes que ela se degrade ainda mais.
Sobre a noite eleitoral
O PS esvaziou os partidos de esquerda (BE e CDU), porventura penalizados pelo chumbo do orçamento conducente a uma crise política em plena crise pandémica e económica, e os novos partidos de direita erodiram a direita histórica. Uma direita com um partido (PSD) tomado por um proto-autoritário que pretende controlar a justiça e a comunicação social e navega ao sabor do vento no que diz respeito a coligações com a extrema-direita, e outro (CDS) a morrer nas mãos de um adolescente tardio que julga liderar uma associação de estudantes e se insurge contra espantalhos como o marxismo cultural e a direita fofinha dos salões do Príncipe Real. Ambos abriram espaço para o crescimento de um partido racista e xenófobo (CH) e de outro (IL) alicerçado num libertarianismo yuppie. Temos assim uma direita ideologicamente mais vincada e purista, organizacionalmente escaqueirada e orfã de quem a federe. Perante lideranças incapazes e um crescente radicalismo ideológico à direita, e um comportamento irresponsável à esquerda do PS, sendo as eleições ganhas ao centro, é natural que os eleitores que oscilam entre PS e PSD tenham decidido reforçar o PS. Isto significa um certo conservadorismo em relação à preservação do regime democrático, do Estado Social, do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública. Ou seja, aquilo que foram conquistas do liberalismo, do conservadorismo, da democracia cristã e da social-democracia no pós-II Guerra Mundial. Quando perceber isto e se deixar de aventureirismos, talvez a direita consiga voltar a ganhar eleições.
Menos estadão, mais liberdade
O Expresso perguntou a 12 jovens os seus desejos para 2022. Aqui fica o meu;
Menos estadão, mais liberdade
Quando os políticos nos tentam fazer crer que a mera delegação de competências administrativas nos municípios equivale a um processo de descentralização, concluímos que o Estado-aparelho de poder hierarquista, centralizador e habituado a mandar de cima para baixo continua a subjugar-nos.
Falta cumprir-se, como escreveu Alexandre Herculano, “a administração do país pelo país (…) realização material, palpável, efetiva da liberdade na sua plenitude”.
Sob pena de continuarmos enredados num debate em que se confunde deliberadamente descentralização com deslocalização e delegação de competências administrativas, torna-se desejável e necessário um sobressalto cívico que contribua para uma discussão esclarecida e conduza a um verdadeiro processo descentralizador, feito de baixo para cima. É preciso que se criem níveis intermédios de governação que tornem o sistema político mais representativo e participativo, concretizando o princípio da subsidiariedadsubsidiariedade e aproximando a decisão política das comunidades locais.
A plena liberdade poderá ser realizada pela descentralização política por via da regionalização, implicando necessariamente a reforma do actual sistema eleitoral de uma democracia sem povo, onde este é apenas chamado a ratificar as listas feitas à porta fechada pela partidocracia. Para romper com o excessivo domínio da vida pública pelos partidos, que, como também assinalava Herculano, carecem da centralização para preservar o poder, urge que a sociedade civil seja capaz de se mobilizar e de os pressionar.
O estadão a que chegámos não é nem tem de ser o fim da história.
Programa para amanhã: Lançamento de “Portugal pós-liberal”, novo livro do Professor José Adelino Maltez
O novo livro do Professor José Adelino Maltez, Portugal pós-liberal, será lançado amanhã na Biblioteca da Academia Militar, em Lisboa, pelas 18:30. A apresentação estará a cargo de João Soares. O livro já pode ser adquirido através da Wook e para mais informações podem consultar a página no Facebook.
Assobiar para o lado
A emergência do populismo no seio das democracias liberais, a perda de hegemonia dos EUA no sistema internacional, a ascensão da China e o ressurgimento da Rússia, ambas potências revisionistas e claras ameaças à zona de paz liberal, o Brexit e o futuro de uma União Europeia dominada por uma Alemanha encantada com Putin, as alterações climáticas, a crise dos refugiados, a cibersegurança e as guerras de informação e desinformação no ciberespaço fomentadas pela Rússia e China e nós o que discutimos? Petições a favor e contra um museu dedicado a Salazar, já depois da crise dos combustíveis, dos incêndios sempre reveladores da nossa aversão ao planeamento sistematizado, da importação dos espantalhos racistas dos estudos pós-coloniais, da sempre presente ideologia de género e da restante espuma dos dias alimentada pelos ciclos noticiosos e pelas shitstorms nas redes sociais. Sem embargo de a esfera pública numa sociedade livre dever comportar os mais diversos temas, entretanto, num mundo cada vez mais globalizado e perigoso, cá continuamos, neste cantinho à beira-mar plantado dominado por certa sociedade de corte composta por caciques e carreiristas partidários e umas quantas dúzias de famílias, sem darmos prioridade à política externa e andando essencialmente a reboque dos parceiros europeus. Já dizia Rodrigo da Fonseca que “nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste”.
Para um debate sobre a política externa portuguesa numa época de turbulência
Esta semana podem encontrar um artigo da minha autoria no Prisma, nova plataforma de slow journalism do Jornal Económico, em que viso contribuir para o debate sobre a política externa portuguesa na era de turbulência em que vamos vivendo, marcada pela crise do euro, crise dos refugiados, Brexit, Trump, Putin, Merkel, populismo, eurocepticismo, fundamentalismo islâmico e uma União Europeia à procura de perceber o seu futuro.
O futebol em abraço armilar
Parece que muita gente terá descoberto, com um espanto inusitado, após a final do Mundial de futebol, que em tempos a França foi um império colonial. Ora, boa parte do país da “liberdade, igualdade e fraternidade” cultiva a concepção subjectiva de nação, que tem raízes em Ernest Renan, para quem a nação não assentava em critérios como a raça, o território, a língua ou a religião, sendo, na realidade, “uma alma, um princípio espiritual,” no qual os indivíduos concretizam “o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu indivisa.” Mas um certo nacionalismo assente na concepção objectiva, tributária de diversos autores franceses, alemães e britânicos e com especial relevo na cultura germânica, ignorando que a história humana difere da zoologia, parece assistir a uns quantos que se esquecem do que foi e do que ainda hoje é Portugal, cuja Selecção nacional de futebol tem jogadores originários de vários países da CPLP. Por mim, subscrevendo aquele Fernando Pessoa para quem a pátria era a língua portuguesa, preferia cumprir o abraço armilar no futebol e ter num Mundial uma equipa da lusofonia. Já que noutros domínios o triângulo estratégico Lisboa-Luanda-Brasília parece funcionar mal, talvez ajudasse a causa da lusofonia ter na mesma equipa Ronaldo e Neymar, Casemiro e William, Marcelo e Pepe, Gelson e Philippe Coutinho, Danilo e Fernandinho.
Parabéns a Mário Centeno
A eleição de Mário Centeno para Presidente do Eurogrupo numa altura em que a França tem um Presidente com uma visão para o futuro da União Europeia e em que a arrogante e obtusa dominação merkeliana parece ameaçada, é uma boa notícia. Mas o desfecho das negociações para a formação de governo na Alemanha será determinante para o futuro da União Europeia.
O capital talvez tenha pátria
A Alemanha que se recusa a reconhecer que a União Económica e Monetária (UEM) gera desequilíbrios que levam a choques assimétricos, que acredita que os seus excedentes comerciais resultam meramente da boa gestão e não se devem aos desequílibrios estruturais da UEM e à utilização de uma moeda subvalorizada, que insistiu na narrativa dos trabalhadores do norte da Europa vs. os preguiçosos do sul e que empurrou vários países para resgates financeiros que tinham entre os seus principais objectivos a privatização de empresas em sectores económicos estratégicos, vem agora queixar-se da influência que a China tem sobre os países europeus em que investiu. Mais do que irónico, é ilustrativo quanto baste da falta de visão da liderança merkeliana e de todos aqueles que sofrem do que Ulrich Beck denominou por cegueira da economia, que atinge muitos economistas que, segundo Wolfgang Munchau, padecem de analfabetismo político-social.
Da incapacidade crónica para assumir responsabilidades
Se considerarmos os problemas do SIRESP recentemente revelados, nomeadamente, a cláusula de exclusão de responsabilidade da empresa que gere o sistema caso este falhe aquando de situações de emergência – que terá tido a anuência de António Costa, Ministro da Administração Interna que assinou o contrato em 2006 -, o relatório de 2014 da KPMG, solicitado pelo governo de Passos Coelho, que identificava várias falhas no sistema, e, no que diz respeito em particular ao que se passou no incêndio em Pedrógão Grande, o vergonhoso jogo de vários organismos que procuram atribuir culpas uns aos outros e não se responsabilizam pelos seus próprios erros e problemas, concluímos que não só ninguém fica bem na fotografia, como estamos perante indivíduos com uma mentalidade infantil no que concerne à assunção de responsabilidades – só falta dizer, como as crianças, que “foi sem querer”.
Todos os anos Portugal é assolado por incêndios. Todos os anos os políticos se lamentam, mas pouco ou nada fazem para mudar esta situação. Desta feita, morreram 64 pessoas, muitas das quais devido a terem sido encaminhadas para uma estrada que deveria ter sido cortada. O Estado falhou naquela que é a sua principal incumbência, proteger os seus cidadãos, ninguém quer assumir responsabilidades pelas falhas e erros e o pior é que, provavelmente, no próximo ano continuaremos a ver milhares de hectares do país a arder. Tudo isto é absolutamente vergonhoso.
Da esquerda e da direita em Portugal
Francisco Mendes da Silva, “O Estado caixeiro-viajante”:
É claro que para esse debate será necessária a existência de uma esquerda que não deteste a ideia de nação, ou de pátria, e de uma direita que não abomine a ideia de Estado. Ou seja, uma esquerda que perceba que é a nação que melhor reproduz o sentimento de destino partilhado indispensável às políticas de solidariedade que defende; e uma direita para a qual o anti-estatismo seja só a vontade liberal de remeter o Estado ao seu papel subsidiário, não uma demanda melancólica, pré-moderna, pela sua aniquilação.
Portugal na Monocle
A edição mais recente da Monocle inclui um relatório de 64 páginas dedicado a Portugal que aborda temas como o ambiente de negócios, o sector do turismo, a gastronomia, as livrarias, a indústria do vinho, entre outros. Não digam nada é aos ultra-pessimistas crónicos cá do burgo que julgam viver num país subdesenvolvido.