Camille Paglia, “Liberdade vs. politicamente correcto,” Ler, no. 144 (Inverno de 2016): 71:
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Sobre o politicamente correcto
Raymond Boudon, Os Intelectuais e o Liberalismo (Lisboa: Gradiva, 2005), 85-86:
Podemos afirmar que estes diversos factores – a descida média das exigências escolares e universitárias, a implantação de uma epistemologia que desvaloriza o conceito de um saber objectivo – produziram ainda outro efeito de importância crucial: contribuíram para um alastramento do moralismo nos meios do ensino e, mais ainda, nos meios intelectuais, já que é mais fácil emitir um juízo moral sobre um determinado episódio histórico ou sobre um determinado fenómeno social do que compreendê-lo. Compreender pressupõe ao mesmo tempo informação e competência analítica. Emitir um juízo moral, pelo contrário, não pressupõe nenhuma competência especial. O reconhecimento da capacidade de compreender pressupõe uma concepção objectivista do conhecimento. O reconhecimento da capacidade de sentir, não. Acresce que, se um dado juízo moral vai ao encontro da sensibilidade de um certo público, ou cumpre os dogmas que cimentam uma determinada rede de influência, pode ser socialmente rentável.
A isto é preciso acrescentar, antecipando uma objecção possível, que o relativismo cognitivo – o relativismo em matéria de saber – não implica de maneira nenhuma o relativismo em matéria de moral. Pelo contrário, o relativismo cognitivo estimula a ética da convicção. Porque, como uma convicção não pode, à luz do relativismo cognitivo, ser objectivamente fundamentada, o facto de ser vivida como justa é facilmente encarado como único critério que permite validá-la. Este critério tende por isso a ser considerado necessário e suficiente. O episódio do Quebeque a que anteriormente me referi, em que um grupo de feministas propôs que fossem atenuadas as exigências do doutoramento a favor das mulheres, com o argumento de que o saber é sempre incerto enquanto as exigências morais são irrecusáveis, é um exemplo que atesta este efeito.
Assim se compreende que a desvalorização do saber possa ser acompanhada de uma sobrevalorização da moral ou, mais exactamente, de uma exacerbação das exigências em matéria de igualdade em detrimento de outros valores. É talvez este fenómeno que algumas expressões hoje repetidas à exaustão tentam captar: «o pensamento único», «o politicamente correcto», a political correctness.