Com o spin em alta rotação a presentear-nos com leituras e interpretações dos resultados eleitorais para todos os gostos, observo que continuamos a ser uma democracia deficitária, com cidadãos menorizados a serem exclusivamente chamados a ratificar o que os directórios partidários decidem à porta fechada. Assim se explica que muitos dos eleitos do PS e do PSD sejam ilustres desconhecidos e/ou meros caciques e que as respectivas listas tenham sido encabeçadas por péssimos candidatos – por mais que os seus correligionários nos queiram convencer do contrário. Com a honrosa excepção do Livre – não obstante o resultado das suas eleições primárias ter desagradado a direcção -, o recrutamento político continua a fazer-se em circuito fechado, e para os partidos do centrão as eleições europeias servem para pouco mais do que promover alguns boys and girls e/ou incómodos reais ou potenciais para o chefe. Infelizmente, os nossos políticos de vistas curtas não sabem fazer melhor. Por último, destaco a descida do Chega e a vitória da Iniciativa Liberal, o único partido que cresceu quer em termos absolutos quer em percentagem e, portanto, o único, para além do PS, que se pode afirmar como vencedor nestas eleições.
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Jota a Jota: Especial Chega
A convite de Luis Francisco Sousa, estive à conversa com Riccardo Marchi sobre o Chega e André Ventura para o podcast Jota a Jota. Podem ouvir no formato podcast ou assistir ao vídeo que aqui fica.
Rescaldo da noite de eleições europeias
Lá fora, ainda não foi desta que a onda populista se tornou tsunami.
Cá dentro, à esquerda, se um partido no governo, com um péssimo cabeça de lista, consegue este resultado, imagine-se o que não conseguirá nas legislativas se as circunstâncias sociais e políticas se mantiverem estáveis; à direita, se esta não for capaz de se entender, de gerar um projecto inovador e agregador, de concorrer a eleições em coligações amplas, dificilmente voltará a ser governo nos próximos anos – e não será com as lideranças de Rio e Cristas, ambos sem ideias para o país e com o carisma de uma couve de Bruxelas, e ignorando ou descurando o potencial da Aliança e da Iniciativa Liberal, que conseguirá conquistar o poder.
A grande vencedora, porém, continua a ser a abstenção, que, como é habitual, foi vilipendiada durante toda a noite por vários políticos e políticos-comentadores. A este respeito, e em modo telegráfico, saliento apenas que os sistemas partidário e eleitoral portugueses são bastante elitistas, fechados, pouco representativos da sociedade portuguesa e avessos à participação política. Podemos sempre colocá-los em perspectiva histórica e levar em consideração as condicionantes com que se defrontou uma recente e frágil democracia nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas passados 45 anos, temos partidos-cartel que dificultam a entrada de novos partidos no jogo democrático, não há a possibibilidade de candidaturas independentes à Assembleia da República, o mandato livre dos deputados é, na verdade, um mandato imperativo pertencente aos partidos que impõem uma profundamente anti-democrática disciplina de voto, não há eleições primárias nos partidos, não temos voto preferencial, não temos círculos uninominais e a tão propalada reforma do sistema eleitoral é mero ornamento de programas eleitorais de partidos que, obviamente, nunca irão abdicar voluntariamente de um sistema que lhes dá o poder que detêm e lhes permite continuarem a desdenhar a sociedade civil. A representação é cada vez mais ténue e a participação política para a generalidade da população, porque os partidos assim o querem, limita-se ao voto em listas previamente feitas pelas máquinas partidárias, ou seja, a uma mera ratificação do que os partidos decidem à porta fechada. É claro que há pessoas que têm pouco ou nenhum interesse pela política, mas colocar inteiramente o ónus da abstenção na generalidade dos portugueses, demitindo-se os partidos de quaisquer responsabilidades pelo actual estado de coisas, é, no mínimo, incorrecto e injusto. Por tudo isto, de cada vez que oiço da boca de políticos, em noites eleitorais, a ladainha da abstenção e do desinteresse dos portugueses pela política, apetece-me logo puxar da pistola. Isto é assim e continuará a ser assim porque os partidos querem que assim seja.
A direita, a esquerda e a minha liberdade
Tenho lido críticas a uma certa direita trauliteira que não tem – nem remotamente – o nível intelectual e cultural de verdadeiras referências direitistas. De facto, do Observador às redes sociais, passando pelo CDS, a direita portuguesa tem-se tornado um espaço pouco recomendável, porque dominado por caceteiros, hiper-moralistas com telhados de vidro e que não passam de aprendizes de Maquiavel, muito economês, liberalismo de pacotilha e pouca ou nenhuma capacidade de pensamento e reflexão e de diálogo moderado e civilizado com outras perspectivas filosóficas, ideológicas e partidárias. Dir-me-ão que os jornais, os partidos e as redes sociais não são universidades ou think tanks, mas quer-me parecer que o grau de indigência intelectual não necessitava de ser tão elevado. Trata-se, tomando emprestada uma expressão, de uma direita analfabeta, uma direita que pouco ou nada lê, permeada por um dogmatismo impressionante para quem, como eu, subscreve o decálogo liberal de Bertrand Russell.
Não que a esquerda seja necessariamente melhor. Com efeito, continuamos a ter, como assinala José Adelino Maltez, “A direita e a esquerda mais estúpidas do mundo”, que “são como aquelas claques da futebolítica que afectaram socrateiros e continuam a infestar certos coelheiros, segundo os quais quem não é por mim é contra mim, porque quem não é por estes é a favor dos outros. Eu continuo a seguir a velha máxima de Unamuno: o essencial do homem ocidental é ser do contra. Para poder ser qualquer coisinha…”
Na verdade, a direita que habitualmente critica a esquerda por esta se alcandorar a uma certa superioridade moral, mimetiza esta atitude, o seu modo de pensar e comportamentos. Ambas reflectem aquilo a que me referi como a política do dogmatismo e a política da utopia, ambas alicerçadas no que Oakeshott chamava de política racionalista ou política do livro, da cartilha ideológica. Afinal, como também há tempos escrevi, é muito fácil ser libertário ou comunista: “Não por acaso, para o esquerdista, o Estado é o principal instrumento a utilizar e o mercado é o principal inimigo a abater, enquanto para o libertário é precisamente o contrário. Um pensador conservador pensa a partir do real, das circunstâncias práticas, sem deixar de criticar a sociedade em que vive, encontrando no Estado e no mercado diferentes esferas da vida humana, ambas necessárias a uma sociedade livre e próspera; um pensador esquerdista ou um libertário pensam a partir de um qualquer ideal e clamam contra tudo o que não se conforma a esse ideal. O racionalismo dogmático ou construtivista do esquerdista ou do libertário que defendem um valor acima de todos os outros em qualquer tempo e lugar, independentemente das circunstâncias práticas, consubstancia a política dos mentalmente preguiçosos.”
Talvez valha a pena relembrar uma célebre passagem de Alçada Baptista, para quem “Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.”
Ao que eu acrescento que conservadores não dogmáticos, que entendam a dimensão pluralista e flexível da reflexão e da praxis política a que alude Kekes, também já reparei que há muito poucos. Há muito poucas pessoas, em Portugal, que, atentando especificamente no domínio do político, compreendam o que Oakeshott transmitiu, em “On Being Conservative”, ao considerar que a disposição conservadora não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo,” que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador.”
Tendo eu passado por uma escola, o ISCSP, onde, citando Adriano Moreira, aprendi “a olhar em frente e para cima”, tendo como referências mestres como José Adelino Maltez e Jaime Nogueira Pinto, tendo ao longo da última década lido e reflectido sobre diversos autores, como Hayek, Popper, Oakeshott ou Kekes, ou seja, como alguém que privilegia o mundo intelectual sobre o político ou partidário, torna-se particularmente penoso não só constatar tudo o que acima escrevi, mas também continuar a compactuar com este estado de coisas através da minha condição de militante do CDS. Por tudo isto, solicitei hoje a minha desfiliação. Porque mais importante ainda do que ser do contra, é ser livre, e porque como escreveu Ortega y Gasset, “A obra intelectual aspira, com frequência em vão, a aclarar um pouco as coisas, enquanto que a do político, pelo contrário, costuma consistir em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: ambas são, com efeito, formas da hemiplegia moral.”
Sobre as alterações à lei do financiamento partidário
Já quase tudo se disse a respeito das alterações à lei do financiamento partidário. O processo foi desastroso, as explicações e justificações ainda mais, mas o conteúdo das alterações não me parece chocante, à excepção da possibilidade de aplicação retroactiva da isenção do IVA. Por mim, os partidos até poderiam estar isentos de todos os impostos e não ter qualquer limite à angariação de fundos, mas, em contrapartida, não receberiam subvenções estatais e teria de ser criado um regime de enquadramento legal da actividade de lobbying ou representação de interesses, passando as contas e a actividade dos partidos com assento parlamentar a serem muito mais transparentes e escrutinadas – o que, obviamente, não interessa a quem legisla e se senta à mesa do Orçamento. Agora, querer o melhor de dois mundos, subvenções partidárias pagas pelo Orçamento do Estado e doações e angariações de fundos sem limite é que me parece algo digno de indignação e uma questão para a qual ainda não vi ninguém alertar.
Populismo, tecnocracia e democracia liberal
Daniele Caramani, “Will vs. Reason: The Populist and Technocratic Forms of Political Representation and Their Critique to Party Government”, American Political Science Review 111, no. 1 (2017):
Populism and technocracy see themselves as antipolitics and, more specifically, antiparty. Whether in their actor (movements and parties), discourse and ideology, or regime and institutional versions, both forms of representation claim to be external to party politics. In fact, the more precise claim of these forms of representation is that they are above party politics, which is seen in negative terms for various reasons. Parties are carriers of particular interests rather than the interests of society as a whole and even pursue the interests of the “part”—as it were—to the detriment, when necessary, of the general interest. Parties, rather than being perceived as capable of formulating visions and projects for the common good of the society (albeit alternative ones), are seen merely in terms of individualistic and self-interested (ultimately irresponsible) factions that articulate particularistic interests.
(…).
First, in both populism and technocracy there is the idea of a unitary, general, common interest of a given society (a country). In these views, there are things that are either good or bad for the whole of society and political action can be either good or bad for a society in its entirety. There is a homogenous and organic vision of the people and the nation. It is furthermore possible to “discover” this common or general interest. While populism and technocracy—as is discussed below—have fundamentally different views on how to identify the unitary interest, they are confident that it exists and can be found out.
Second, both populism and technocracy have a nonpluralistic view of society and politics. Politics is doing what is good for all, not articulating, allocating and deciding between diverse interests, or aggregating them. To be more precise, an aggregation does indeed take place. However, rather than having competing proposals of aggregation (as this is the case in parties’ ideologies) given to people to choose from, the true solution is manifest and indisputable. In this sense, both pretend to be, and present themselves as, antiideological. There are no party platforms needed (for a prospective decision) and, when and where these are available, they should not be binding. To be sure, mass political parties, too, present a unified vision of the public interest. This is precisely their function of “aggregation” of various interests from diverse constituencies. However, differently from populism and technocracy, several visions are present in the system, they compete with one another and compromise is sought—either through majority-opposition alternation over time or consensual institutions.
While party government is mainly based on a prospective “mandate” view (input counts and parties are bound to what they promise), populism and technocracy are based on a retrospective “independent” view (output counts) as they operate through vagueness rather than through a precise program or mandate. Both populism and technocracy thus follow a trustee model. In technocracy, people cannot give a mandate because they do not possess the faculty of identifying society’s interest. In populism, it could be argued that the leadership determines people’s interests through a strong identification with them (embodiment)—by being “one of them.” This can be seen as a form of mandate. Yet there is a complete transfer of decision making to the leadership that is unquestioned. Questioning the leadership is automatically questioning the will of the people. In the party government conception of democracy, on the other hand, voters are assumed to have some degree of expertise.
Third, both populism and technocracy—in their vision of a unitary society and refusal of plurality—see the relationship between people and elite as “unmediated.” All that comes in-between is a source of distortion of the general interest. As a consequence, populism and technocracy rely on an independent elite to which the people entrust the task of identifying the common interest and the appropriate solution. In spite of presenting themselves as antielite and antiestablishment, the populist model is as elitist—if not more—than party government with leaders being uncontested and unquestioned over protracted periods and enjoying vast spaces to manoeuvre and freedom to interpret people’s interest. It is no accident that populist parties—be it in the past or recently in Austria’s FPÖ, France’s National Front, Italy’s Northern League, or Britain’s UKIP among others—have lasting leaderships that are largely uncontested and based on acclamatory and plebiscitarian mobilization. In fact, both types of ideologies have often found their application in nondemocratic regimes, most notably in Latin America, be it the populist-plebiscitarian regimes or the technocratic-military regimes.
(…).
In different ways, populism and technocracy are both antipolitical forms of representation. While politics is competition, aggregation of plurality and allocation of values, populism and technocracy see society as monolithic with a unitary interest. While populism and technocracy aim at discovering the common good, parties compete to define it. Both populism and technocracy do not conceive of a legitimate opposition insofar as that would involve conceiving of “parts” being opposed to the interest of the whole. In the case of populism, plurality is reduced to the opposition between people and elite. In the case of technocracy, plurality is reduced to the opposition between right and wrong. In the former, opposition is corrupt; in the latter it is irrational.
(…).
For the sake of the theoretical argument, the article has presented the populist and technocratic alternatives to party government through ideal types rather than empirical cases. For sure, the technicization of political decision making is undermining democratic sovereignty and the popularization of politics and the public sphere is undermining the informed and respectful participation of citizens in favor of mob-type attitudes. However, in recent times this challenge has so far remained within the frame of the liberal democratic state. In contrast, between World War I and II many West European countries experienced a breakdown of democracy and many countries in Southern/Eastern Europe and Latin America had protracted periods during which regimes based on either or both populist and technocratic principles ruled. Today, populists mobilize as political parties themselves and participate to the electoral competition as well as national executives. Experts are co-opted by parties (often from think tanks linked to them) that rely on their expertise and delegate the task of taking unpopular decisions especially at the transnational level. There have been cases, as in Italy after the Monti cabinet of 2011−12, of experts creating political parties. By participating in elections, they offer precisely the kind of “agonistics” that legitimize the system and, when they enter government, movements and experts morph, vindicating party democracy. Populism and technocracy therefore operate as “correctives” of—not only alternatives to—party government.