O regresso do fim das ideologias

Hoje escrevo no Observador sobre como a guerra na Ucrânia nos coloca perante um retorno da tese do fim das ideologias. Aqui fica um excerto:

Nesta conjuntura internacional, parece-nos importante questionar se não estaremos também a assistir ao regresso da tese do fim das ideologias, desta feita com base na dicotomia entre democracias liberais e regimes autoritários. Esta já era uma característica da política internacional pós-Guerra Fria, mas a interdependência económica entre as democracias liberais e, principalmente, a Rússia e a China, levou o Ocidente a lidar com uma certa bonomia com as interferências e tentativas de subversão das suas sociedades abertas. Agora que as aparências caíram por terra, somos todos, nas democracias liberais, convocados para um confronto político e ideológico. Com raras excepções, as divergências entre a esquerda e a direita parecem dar lugar a uma coesão social que se revela no apoio à Ucrânia e na consciência de que estamos perante uma ameaça existencial ao modo de vida demoliberal. A política internacional volta a definir as convergências e cisões ideológicas. O século XXI começa agora.

A direita, a esquerda e a minha liberdade

Tenho lido críticas a uma certa direita trauliteira que não tem – nem remotamente – o nível intelectual e cultural de verdadeiras referências direitistas. De facto, do Observador às redes sociais, passando pelo CDS, a direita portuguesa tem-se tornado um espaço pouco recomendável, porque dominado por caceteiros, hiper-moralistas com telhados de vidro e que não passam de aprendizes de Maquiavel, muito economês, liberalismo de pacotilha e pouca ou nenhuma capacidade de pensamento e reflexão e de diálogo moderado e civilizado com outras perspectivas filosóficas, ideológicas e partidárias. Dir-me-ão que os jornais, os partidos e as redes sociais não são universidades ou think tanks, mas quer-me parecer que o grau de indigência intelectual não necessitava de ser tão elevado. Trata-se, tomando emprestada uma expressão, de uma direita analfabeta, uma direita que pouco ou nada lê, permeada por um dogmatismo impressionante para quem, como eu, subscreve o decálogo liberal de Bertrand Russell.

Não que a esquerda seja necessariamente melhor. Com efeito, continuamos a ter, como assinala José Adelino Maltez, “A direita e a esquerda mais estúpidas do mundo”, que “são como aquelas claques da futebolítica que afectaram socrateiros e continuam a infestar certos coelheiros, segundo os quais quem não é por mim é contra mim, porque quem não é por estes é a favor dos outros. Eu continuo a seguir a velha máxima de Unamuno: o essencial do homem ocidental é ser do contra. Para poder ser qualquer coisinha…”

Na verdade, a direita que habitualmente critica a esquerda por esta se alcandorar a uma certa superioridade moral, mimetiza esta atitude, o seu modo de pensar e comportamentos. Ambas reflectem aquilo a que me referi como a política do dogmatismo e a política da utopia, ambas alicerçadas no que Oakeshott chamava de política racionalista ou política do livro, da cartilha ideológica. Afinal, como também há tempos escrevi, é muito fácil ser libertário ou comunista: “Não por acaso, para o esquerdista, o Estado é o principal instrumento a utilizar e o mercado é o principal inimigo a abater, enquanto para o libertário é precisamente o contrário. Um pensador conservador pensa a partir do real, das circunstâncias práticas, sem deixar de criticar a sociedade em que vive, encontrando no Estado e no mercado diferentes esferas da vida humana, ambas necessárias a uma sociedade livre e próspera; um pensador esquerdista ou um libertário pensam a partir de um qualquer ideal e clamam contra tudo o que não se conforma a esse ideal. O racionalismo dogmático ou construtivista do esquerdista ou do libertário que defendem um valor acima de todos os outros em qualquer tempo e lugar, independentemente das circunstâncias práticas, consubstancia a política dos mentalmente preguiçosos.”

Talvez valha a pena relembrar uma célebre passagem de Alçada Baptista, para quem “Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.”

Ao que eu acrescento que conservadores não dogmáticos, que entendam a dimensão pluralista e flexível da reflexão e da praxis política a que alude Kekes, também já reparei que há muito poucos. Há muito poucas pessoas, em Portugal, que, atentando especificamente no domínio do político, compreendam o que Oakeshott transmitiu, em On Being Conservative”, ao considerar que a disposição conservadora não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo,” que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador.”

Tendo eu passado por uma escola, o ISCSP, onde, citando Adriano Moreira, aprendi “a olhar em frente e para cima”, tendo como referências mestres como José Adelino Maltez e Jaime Nogueira Pinto, tendo ao longo da última década lido e reflectido sobre diversos autores, como Hayek, Popper, Oakeshott ou Kekes, ou seja, como alguém que privilegia o mundo intelectual sobre o político ou partidário, torna-se particularmente penoso não só constatar tudo o que acima escrevi, mas também continuar a compactuar com este estado de coisas através da minha condição de militante do CDS. Por tudo isto, solicitei hoje a minha desfiliação. Porque mais importante ainda do que ser do contra, é ser livre, e porque como escreveu Ortega y Gasset, “A obra intelectual aspira, com frequência em vão, a aclarar um pouco as coisas, enquanto que a do político, pelo contrário, costuma consistir em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: ambas são, com efeito, formas da hemiplegia moral.”

Gritar à toa

Sonho com o dia em que a diferença salarial média entre homens e mulheres se inverta em favor das mulheres e o número de mulheres em cargos políticos e públicos e de direcção no sector privado seja superior ao dos homens. Primeiro, porque, embora se trate de uma realidade em que gostaria de viver, especialmente considerando que durante a esmagadora maioria da história da humanidade as mulheres foram e continuam a ser discriminadas de formas abjectas, repulsivas e sem qualquer justificação, perceberíamos todos que nem assim se conseguiria ultrapassar falhas características da cultura de cada corpo político. Segundo, e mais importante, porque deixaríamos de assistir ao chinfrim que os guerreiros pela igualdade de género a todo o custo teimam em produzir vociferando os seus preconceitos ideológicos assentes numa concepção profundamente errada da condição humana e numa compreensão débil dos fenómenos sociais, decorrentes do racionalismo construtivista. O que não quer dizer que, entretanto, não encontrem outras causas a que possam dedicar os seus esforços. Afinal, o racionalismo construtivista talvez nunca tenha tido um solo tão fértil como as hodiernas sociedades demo-liberais onde, infelizmente, a política da cartilha ideológica se sobrepôe à política enquanto conversação e acomodação de diferentes perspectivas. Como canta Samuel Úria numa belíssima crítica à primeira, Repressão!/ Repressão!/ Grita-se à toa/ Qualquer causa é boa num refrão.

Os liberais (no sentido norte-americano do termo) são tão intolerantes quanto os conservadores

Matthew Hutson:

So who’s right? Are conservatives more prejudiced than liberals, or vice versa? Research over the years has shown that in industrialized nations, social conservatives and religious fundamentalists possess psychological traits, such as the valuing of conformity and the desire for certainty, that tend to predispose people toward prejudice. Meanwhile, liberals and the nonreligious tend to be more open to new experiences, a trait associated with lower prejudice. So one might expect that, whatever each group’s own ideology, conservatives and Christians should be inherently more discriminatory on the whole.

But more recent psychological research, some of it presented in January at the annual meeting of the Society of Personality and Social Psychology (SPSP), shows that it’s not so simple. These findings confirm that conservatives, liberals, the religious and the nonreligious are each prejudiced against those with opposing views. But surprisingly, each group is about equally prejudiced. While liberals might like to think of themselves as more open-minded, they are no more tolerant of people unlike them than their conservative counterparts are.

Political understanding might finally stand a chance if we could first put aside the argument over who has that bigger problem. The truth is that we all do.

O perigo do viés de confirmação e das certezas absolutas

Robert Burton em entrevista à Scientific American:

BURTON: A personal confession: I have always been puzzled by those who seem utterly confident in their knowledge. Perhaps this is a constitutional defect on my part, but I seldom have the sense of knowing unequivocally that I am right. Consequently I have looked upon those who ooze self-confidence and certainty with a combination of envy and suspicion. At a professional level, I have long wondered why so many physicians will recommend unproven, even risky therapies simply because they “know” that these treatments work.

(…)

LEHRER: To what extent do these mechanisms come into play during a presidential election? It seems like we all turn into such partisan hacks every four years, completely certain that our side is right.

BURTON: The present presidential debates and associated media commentary feel like laboratory confirmation that the involuntary feeling of certainty plays a greater role in decision-making than conscious contemplation and reason.

I suspect that retreat into absolute ideologies is accentuated during periods of confusion, lack of governmental direction, economic chaos and information overload. At bottom, we are pattern recognizers who seek escape from ambiguity and indecision. If a major brain function is to maintain mental homeostasis, it is understandable how stances of certainty can counteract anxiety and apprehension. Even though I know better, I find myself somewhat reassured (albeit temporarily) by absolute comments such as, “the stock market always recovers,” even when I realize that this may be only wishful thinking.

Sadly, my cynical side also suspects that political advisors use this knowledge of the biology of certainty to actively manipulate public opinion. Nuance is abandoned in favor of absolutes.

LEHRER: How can people avoid the certainty bias?

BURTON: I don’t believe that we can avoid certainty bias, but we can mitigate its effect by becoming aware of how our mind assesses itself. As you may know from my book, I’ve taken strong exception to the popular notion that we can rely upon hunches and gut feelings as though they reflect the accuracy of a thought.

My hope is the converse; we need to recognize that the feelings of certainty and conviction are involuntary mental sensations, not logical conclusions. Intuitions, gut feelings and hunches are neither right nor wrong but tentative ideas that must then be submitted to empirical testing. If such testing isn’t possible (such as in deciding whether or not to pull out of Iraq), then we must accept that any absolute stance is merely a personal vision, not a statement of fact.

Perhaps one of my favorite examples of how certainty is often misleading is the great mathematician Srinivasava Ramanujan. At his death, his notebook was filled with theorems that he was certain were correct. Some were subsequently proven correct; others turned out to be dead wrong. Ramanujan’s lines of reasoning lead to correct and incorrect answers, but he couldn’t tell the difference. Only the resultant theorems were testable.

In short, please run, do not walk, to the nearest exit when you hear so-called leaders being certain of any particular policy. Only in the absence of certainty can we have open-mindedness, mental flexibility and willingness to contemplate alternative ideas.

Liberais e conservadores precisam uns dos outros

George H. Nash, “Populism, I: American conservatism and the problem of populism”:

In the late 1950s and early 1960s the three independent wings of the conservative revolt against the Left began to coalesce around National Review, founded by William F. Buckley Jr. in 1955. Apart from his extraordinary talents as a writer, debater, and public intellectual, Buckley personified each impulse in the developing coalition. He was at once a traditional Christian, a defender of the free market, and a staunch anticommunist (a source of his ecumenical appeal to conservatives).

As this consolidation began to occur, a serious challenge arose to the fragile conservative identity: a growing and permanent tension between the libertarians and the traditionalists. To the libertarians the highest good in society was individual liberty, the emancipation of the autonomous self from external (especially governmental) restraint. To the traditionalists (who tended to be more religiously oriented than most libertarians) the highest social good was not unqualified freedom but ordered freedom grounded in community and resting on the cultivation of virtue in the individual soul. Such cultivation, argued the traditionalists, did not arise spontaneously. It needed the reinforcement of mediating institutions (such as schools, churches, and synagogues) and at times of the government itself. To put it another way, libertarians tended to believe in the beneficence of an uncoerced social order, both in markets and morals. The traditionalists often agreed, more or less, about the market order (as opposed to statism), but they were far less sanguine about an unregulated moral order.

Not surprisingly, this conflict of visions generated a tremendous controversy on the American Right in the early 1960s, as conservative intellectuals attempted to sort out their first principles. The argument became known as the freedom-versus-virtue debate. It fell to a former Communist and chief ideologist at National Review, a man named Frank Meyer, to formulate a middle way that became known as fusionism—that is, a fusing or merging of the competing paradigms of the libertarians and the traditionalists. In brief, Meyer argued that the overriding purpose of government was to protect and promote individual liberty, but that the supreme purpose of the free individual should be to pursue a life of virtue, unfettered by and unaided by the State.

As a purely theoretical construct, Meyer’s fusionism did not convince all his critics, then or later. But as a formula for political action and as an insight into the actual character of American conservatism, his project was a considerable success. He taught libertarian and traditionalist purists that they needed one another and that American conservatism must not become doctrinaire. To be relevant and influential, it must stand neither for dogmatic antistatism at one extreme nor for moral authoritarianism at the other, but for a society in which people are simultaneously free to choose and desirous of choosing the path of virtue.

(…).

What do conservatives want? To put it in elementary terms, I believe they want what nearly all conservatives since 1945 have wanted: they want to be free; they want to live virtuous and meaningful lives; and they want to be secure from threats both beyond and within our borders. They want to live in a society whose government respects and encourages these aspirations while otherwise leaving people alone. Freedom, virtue, and safety: goals reflected in the libertarian, traditionalist, and national security dimensions of the conservative movement as it has developed over the past seventy years. In other words, there is at least a little fusionism in nearly all of us. It is something to build on. But it will take time.

Do dogmatismo da ideologia de género

Camille Paglia, “Liberdade vs. politicamente correcto,” Ler, no. 144 (Inverno de 2016): 67:

Mantenho, de acordo com a minha desalentada observação na época, que esses novos programas suplementares raramente, ou mesmo nunca, se alicerçavam em princípios académicos autênticos: eram gestos de relações públicas destinados a abafar críticas de um passado intolerante. Na concepção de qualquer programa de estudos femininos, por exemplo, devia ser obrigatório para as alunas fazerem pelo menos uma cadeira de biologia básica, para que o papel das hormonas no desenvolvimento humano pudesse ser investigado – e rejeitado, se necessário. Mas não, tanto os estudos femininos como, mais tarde, os estudos de género evoluíram sem referência à ciência, garantindo desse modo que a sua ideologia permaneceria partidária e unidimensional, a sublinhar a construção social do género. Qualquer ponto de vista diferente é considerado uma heresia e praticamente nunca foi sequer apresentado aos estudantes como hipótese alternativa.

Ideologia como vocação

Daniel Johnson, “Ideology as a vocation”:

Scholarship requires one to follow the evidence, the logic, and above all one’s conscience. Ideology promises a release from all three, into a gravitas-free zone where all that matters is commitment to a cause. Once a scholar has made ideology rather than integrity his or her vocation, it is almost irrelevant which ideology it is.