Crónica de uma queda anunciada

Luís Montenegro poderia ter-nos poupado ao penoso espectáculo desta tarde, cujo desfecho estava mais do que anunciado. Já se tinha percebido que o Primeiro-Ministro não tem respeito pela função (“circunstância”, nas palavras do próprio) que desempenha, mas foi particularmente ilustrativo do irregular funcionamento das instituições vermos o Governo a aventar uma proposta de Comissão Particular de Inquérito em que o escrutinado é que decidiria o tempo de que os escrutinadores disporiam, numa clara intromissão do executivo no poder legislativo. Ao actuarem quase exclusivamente no domínio da táctica, acabaram a violar princípios basilares da democracia liberal e do republicanismo. Verdadeiramente notável.

Entretanto, com a rejeição da moção de confiança, chega ao fim um Governo despudoradamente classista e elitista, que governou a pensar essencialmente em determinados grupos e faixas etárias e para o qual a generalidade da população entre os 36 e os 67 anos de idade serviu apenas para pagar impostos que financiaram medidas e políticas públicas socialmente injustas e fiscalmente desiguais, cujo objectivo principal foi fidelizar determinados segmentos do eleitorado que o anterior Governo do PSD e CDS tinha alienado. A tão propalada estabilidade política não passa de uma farsa com que o Governo tentou escamotear a tragédia da continuada decadência de sectores cruciais para o desenvolvimento do país e o futuro da população, como a saúde e a educação, a habitação e a justiça. Abre-se, agora, uma janela de oportunidade para que um novo Governo tente fazer mais e melhor – e, de preferência, que não tenha problemas de carácter ético e/ou legal que, pese embora aproveitem invariavelmente aos populistas desavergonhados, são sintomáticos da lamentável degradação do regime.

Eternamente arrendatários

No programa de governo hoje apresentado anuncia-se a intenção de eliminar o IMT e garantir financiamento a 100% do crédito à habitação para os jovens até aos 35 anos.

Tenho 37 anos, um vínculo laboral precário, e pago, em conjunto com a minha mulher, uma renda de quase 1500 euros num concelho limítrofe de Lisboa, cidade onde trabalhamos. Não beneficiamos de uma rede de suporte familiar em termos financeiros, atravessámos crises económicas sucessivas desde 2008 e temos tentado, na medida do possível, amealhar para adquirir habitação própria, o que se tem tornado verdadeiramente utópico num país com rendas exorbitantes (na região em que trabalhamos), condições de acesso ao crédito restritivas e (mais) um imposto absurdo, o IMT, que se constitui, em conjunto com a exigência de uma entrada de 10% do valor do casa, num enorme obstáculo, especialmente num contexto em que a especulação imobiliária vingou perante a inércia dos governos anteriores, tornando os preços da habitação incomportáveis para milhares de pessoas que se encontram em situação idêntica à nossa.

Impõe-se perguntar: por que raio seremos agora excluídos de uma medida que beneficia os que têm até 35 anos em vez de criar condições equitativas para todos aqueles que necessitam de adquirir uma primeira habitação neste contexto particularmente exigente e desafiante?

Que sentido faz introduzir esta distorção no mercado, privilegiando um segmento etário à custa de outros que estando há anos a lutar para ter uma primeira habitação própria se vêem agora completamente marginalizados pelo governo da AD?

Por que razão somos excluídos de uma medida essencial para as nossas vidas por um critério totalmente arbitrário assente exclusivamente na idade?

Daqui se deduz que, para a AD, todos os que têm mais de 35 anos e se vêem na contingência de pagar rendas exorbitantes e não conseguir adquirir habitação própria servem essencialmente para pagar impostos. Que miséria de país.

Da sobrevalorização da comunicação na era do vazio

A sobrevalorização da forma sobre a matéria, do método sobre a teoria, da comunicação sobre a substância, é sintomática de sociedades permeadas pela superficialidade e efemeridade associadas à modernidade líquida. Nesta, com a relevância assumida pela “empresa” e pelo “mercado” em resultado da globalização económica a manifestar-se na forma como a governação política é encarada e exercida, o poder político vê-se na contingência de poder mudar, frequentemente de modo autoritário, sem uma discussão alargada, características identitárias patentes nas formas comunicacionais, como se um Estado ou um Governo fossem uma qualquer empresa privada. Tratando-se de alterações cosméticas a que subjazem disputas estéticas e políticas, não existe, neste ambiente social e cultural, qualquer possibilidade de arbitrar tais contendas por referência a critérios racionais e comunitariamente partilhados, com as preferências a residirem somente em gostos individuais. O que é feito encontra justificação apenas na força, na vontade de quem temporariamente exerce o poder político. Quem vier a seguir pode sempre fazer como quem veio antes, voltando a mudar a identidade visual, que com tantas variações acaba por erodir o seu próprio significado e, consequentemente, a identificação da comunidade política com o Governo. Nesta matéria, os diferentes governos têm-se comportado como um novo conselho de administração que opera um “rebranding” para se distinguir do anterior. Que as elites governantes não se apercebam do processo de desinstitucionalização do poder político associado a tal comportamento, não é surpreendente. Mas nem assim tudo isto deixa de ser lamentável.

É preciso mudar alguma coisa para que fique tudo como está

Somos fantásticos a organizar eventos, mas frequentemente medíocres a planear quase tudo o resto, muitas vezes até coisas básicas. É uma das razões porque muitas políticas públicas não têm a eficácia desejada, a falta de capacidade de previsão e planeamento – sem falar na execução. Há décadas que o país arde todos os anos e ainda não conseguimos criar um dispositivo altamente profissional, hierarquicamente bem estruturado e comandado, de prevenção e combate aos fogos. Estudos e mais estudos, relatórios, avisos e recomendações de especialistas vários ficam arrumados numa gaveta qualquer enquanto, ano após ano, lideranças políticas medíocres e chefias operacionais de competência duvidosa anunciam investimentos de milhões de euros e, quando as coisas correm mal, atropelam-se em falhadas tentativas de spin sobre o que é mais que evidente: o caos na organização dos meios de combate ao fogo. Pelo meio, ninguém estranha nem se indigna por os bombeiros voluntários, heróis no meio disto tudo, se verem forçados a solicitar apoio em coisas básicas, como água e comida, às populações. Junte-se a isto uma sociedade civil anémica, que nem em face da tragédia que aconteceu em Pedrógão Grande pressionou devidamente as lideranças políticas, e temos as condições para continuar a praticar a célebre máxima de Lampedusa que titula este post. Para o ano há mais, como já é habitual.

Da ciência do governo

Edmund Burke, Select Works of Edmund Burke, vol. 2 (Indianapolis: Liberty Fund, 1999), 153 (tradução minha):

Sendo a ciência do governo, portanto, tão prática em si mesma, e destinada a tais propósitos práticos, uma matéria que requer experiência, e ainda mais experiência do que uma pessoa pode adquirir em toda a sua vida, por mais sagaz e observador que possa ser, é com infinita cautela que qualquer homem deve aventurar-se a demolir um edifício que tenha respondido em qualquer grau tolerável, durante épocas, aos propósitos comuns da sociedade, ou a reconstruí-lo novamente sem ter modelos e padrões de utilidade aprovados perante os seus olhos.