Artigo publicado no Pacta Sunt Servanda, Março de 2009, e também no Estado Sentido
À medida que nos aproximamos do início do mês de Abril, vão-se intensificando os preparativos por parte dos aparelhos diplomáticos dos diversos estados membros da NATO. Na Cimeira de Estrasburgo/Kehl será celebrado o 60.º aniversário da organização, cuja agenda se encontra preenchida por diversas questões que necessitam de reflexão estratégica para poder projectar a Aliança Atlântica como um actor cada vez mais importante no sistema das Relações Internacionais.
Como referiu F. Stephen Larrabee, da Rand Corporation, em entrevista ao Council on Foreign Relations, o assunto mais premente na agenda é, sem sombra de dúvida, a questão do Afeganistão. É crucial encontrar soluções para estabilizar o Afeganistão, operação que está directamente relacionada com a reputação da NATO. Ao que tudo indica, a administração de Barack Obama estará já consciente da necessidade de agir tendo em consideração no cálculo estratégico as diversas condicionantes, o que implica uma abordagem de carácter regional através da aproximação e construção de consensos entre países como a Índia, Paquistão, China, Rússia e, possivelmente, até o Irão.
No seguimento do acima descrito, Joe Biden, Vice-Presidente dos E.U.A., deslocou-se no passado dia 10 de Março ao Conselho do Atlântico Norte, com o objectivo de discutir com os aliados a situação actual no Afeganistão. Numa reunião inserida nas discussões de preparação da Cimeira de Estrasburgo/Kehl, foi dado particular ênfase à abordagem regional, à intervenção junto das comunidades locais afegãs, bem como à necessidade de um maior esforço civil e de apoio à construção das instituições estatais.
Outro dos assuntos que marca actualmente a agenda da NATO é a reentrada da França no comando militar. Após mais de 40 anos passados sobre a decisão do General De Gaulle, o Presidente francês, Nicolas Sarkozy, reafirmou já no passado dia 11 a aproximação e reintegração das forças franceses no comando militar na organização, decisão que caberá ao Parlamento francês oficializar. Esta é uma atitude que só pode agradar a todos os estados que integram a Aliança Atlântica que assim se vê militarmente reforçada, especialmente no que concerne à importância relativa das forças europeias dentro da organização.
Por outro lado, uma das principais questões com que a NATO se depara actualmente prende-se com o relacionamento com a Rússia, o que se enquadra também no espectro maior da dimensão do alargamento, especialmente no que concerne à Ucrânia e à Geórgia. Nos anos 90, após a queda do Muro de Berlim, com o colapso do sistema comunista a par com a aparente tendência de abertura russa ao liberalismo ocidental, vários foram os países da Europa central e de leste acolhidos no seio da NATO com a conivência russa, até porque Moscovo não tinha alternativa. Hoje em dia, a atitude russa encontra-se num ponto diametralmente oposto.
Na actualidade, como alerta Robert Kagan no seu ensaio O Regresso da História e o Fim dos Sonhos, o utópico sonho de Hegel e, mais recentemente, de Francis Fukuyama, o chamado Fim da História, conceito relacionado com a alegada natural expansão das democracia liberal generalizada à maior parte dos estados, parece estar a dar lugar a uma ascensão das autocracias em oposição às democracias, autocracias essas com um forte sentimento de orgulho nacional. É esse o caso da Rússia que com Vladimir Putin recuperou a lógica de grande potência que actua de forma determinante no chamado espaço pós-soviético, afastando-se da imagem criada ao longo dos anos 90.
A Rússia encara a NATO e o Ocidente cada vez mais como forças estranhas que não quer ver interferir na sua tradicional área de influência geopolítica. Dois casos simbólicos do que aqui falamos são a questão do escudo anti-míssil que os próprios russos sugeriram fosse colocado por exemplo em Itália, especialmente porque não querem ver um dos seus antigos estados satélite, a Polónia, adquirir tal capacidade e, de forma ainda mais representativa, o conflito georgiano que ocorreu no passado Verão de 2008. Com o envio de forças para a Abkhazia e Ossétia do Sul, a Rússia enviou uma mensagem ao mundo e à NATO: não tolerará interferências nos países do seu near-abroad.
Isto coloca à NATO um dos principais desafios que terá que enfrentar neste século. Como será possível compatibilizar o alargamento da NATO a países como a Geórgia e Ucrânia, com uma Rússia em clara ascensão como potência, ainda para mais com uma natureza política eminentemente oposta à do Ocidente? Ainda que no passado dia 5 de Março os países da Aliança Atlântica tenham decidido voltar a reunir com a Rússia no Conselho NATO-Rússia com o objectivo de normalizar as relações, o que implicará negociações principalmente em relação à suspensão russa do Tratado sobre as Forças Armadas Convencionais na Europa, como será possível compatibilizar tais relações com a retórica fortemente anti-russa dos estados da Europa Central e de Leste e ainda integrar estados como a Geórgia e a Ucrânia?
Em nossa opinião este será o principal desafio para a NATO no século XXI. As relações com a Rússia têm uma natural implicação na questão do alargamento, na transformação das capacidades da NATO e na definição de novas ameaças. De acordo com o Tratado sobre as Forças Armadas Convencionais na Europa a NATO tem reestruturado e limitado as suas capacidades ao nível militar, com vista a tornar-se uma organização que actua como estabilizador e providência segurança, intervindo inclusive em cenários de crise humanitária, e redireccionando o seu conceito estratégico para enquadrar o combate ao terrorismo. Mas é necessário que seja diminuída a retórica fortemente anti-russa que tem vindo a ser apanágio de alguns dos estados membros da aliança. Ainda que compreensível em termos históricos, é contraproducente, até porque esses estados estão já protegidos ao abrigo da aliança, e teriam muito mais a ganhar com uma gradual aproximação e cooperação com Moscovo.
A NATO terá assim que lidar com a sua própria transformação interna ao nível das capacidades adequadas para as novas ameaças, enquanto as relações com a Rússia se irão assumir como centrais na agenda da organização ao longo deste século. Segundo Kagan, o mundo não estará preparado para regressar a uma retórica de Guerra Fria, mas então, cabe em grande parte à NATO agir proactivamente para que o século XXI fique na história pelas melhores razões.