Era uma vez uma moeda, o Euro

Artigo publicado na Pacta, Março de 2013. 

Estávamos no início dos anos 90 do século XX. O Muro de Berlim acabava de cair e a União Soviética colapsava espectacularmente. O Pacto de Varsóvia dissolvia-se, a NATO emergia como aliança vencedora da Guerra Fria e acreditava-se generalizadamente na tese do Fim da História desenvolvida inicialmente por Hegel, ressuscitada no século XX por Alexandre Kojève e popularizada após a Queda do Muro por Francis Fukuyama. A democracia liberal e o capitalismo apresentavam-se como as formas finais de organização política e económica nas quais o processo histórico culminaria. Até a Rússia, sob a liderança de Boris Yeltsin, parecia aderir a estas, enquanto as Comunidades Europeias se transformavam em União Europeia e preparavam a introdução da moeda única.

Com bases económicas frágeis, que o próprio Chanceler Helmut Kohl conhecia , o Euro é essencialmente um projecto político e constituiu-se como o principal preço que a França acabou por conseguir cobrar à Alemanha pela sua reunificação. Na perspectiva de François Miterrand o Euro deveria servir o propósito de refrear o poder da Alemanha unificada – em conjunto com a redução das suas forças armadas e a renúncia à posse de armamento biológico, nuclear e químico – que Margaret Thatcher também temia . Mas enquanto a Dama de Ferro se opunha à moeda única e alertava para os perigos desta, prevendo que tornaria a Europa menos democrática e seria o princípio de uma Europa federal pela porta dos fundos, a França viu na moeda única a oportunidade de voltar a assumir uma posição de liderança política do Velho Continente.

A História tem uma forma peculiar de revelar, com contornos tragicómicos, as ironias que nos reserva. Não só o Euro serviu precisamente para reforçar o poder alemão como permitiu finalmente à potência germânica dominar a Europa – desta feita sem disparar um único tiro.

Desaparecida a ameaça soviética, continuando a NATO a depender largamente dos esforços norte-americanos, a UE reforçou entretanto a sua posição enquanto potência normativa e civil, predominando as preocupações e políticas relativas à esfera económica. Se, inicialmente, foram os ideários liberal e democrata-cristão que inspiraram as Comunidades Europeias, a partir dos anos 90 o projecto europeu assumiu progressivamente contornos de cariz socialista e autoritário, tendendo para um constante reforço do processo de centralização de poder, que aumenta o défice democrático – que, como Roger Scruton evidencia, não é uma deficiência a ser colmatada pela EU, mas sim uma característica estrutural do funcionamento das instituições europeias – e que produz cada vez mais legislação que já ninguém pode entender no seu todo, regulamentando cada vez mais aspectos da vida dos indivíduos e acabando por realizar uma espécie de planificação económica através da via monetária que se tem revelado particularmente ruinosa, como a crise das dívidas soberanas tornou evidente. Como afirmou Ronald Reagan num célebre discurso, “the more the plans fail, the more the planners plan.”

O planeamentismo económico da UE, a crise financeira de 2008, a crise das dívidas soberanas e a crise do euro acabam também por ter como efeito o predomínio da perspectiva da economia no debate público, que por sua vez absorveu entretanto a ideia partilhada pelos líderes da zona Euro de que a moeda única é absolutamente fundamental e vital para a Europa. Citando Ulrich Beck, “Quem considera a Europa igual ao Euro, já desistiu da Europa. A Europa é uma aliança de antigas culturas mundiais e superpotências que procuram uma saída da sua história bélica.”

Os quase 70 anos de paz na Europa resultaram em larga medida dos esforços da NATO e do processo de integração europeia que tinha como pilares fundamentais a democracia liberal, a liberdade individual, a propriedade privada e o mercado livre. Mas a crise do Euro e os resgates financeiros de vários países deixaram a nu a arrogância autoritária de Bruxelas, que não só coloca a democracia em causa como agora também ameaça o direito de propriedade privada, como a recente medida de confisco dos depósitos bancários em Chipre ilustra exemplarmente. Entretanto a Rússia de Vladimir Putin não apreciou a medida, muito menos a justificação de que assim se atingiria os depósitos de dinheiro russo ilícito, tendo, através da Gazprom, oferecido um pacote de resgate ao governo cipriota, que por sua vez, até ao momento em que escrevo este artigo, declinou a oferta. Certo é que todos os cipriotas e estrangeiros ali residentes se encontram neste momento sem conseguir aceder às suas contas bancárias, o que parece quase impensável acontecer no seio da UE, que além do mais parece ter perdido qualquer visão estratégica ao dar uma oportunidade à Rússia de alterar o equilíbrio geopolítico do Mediterrâneo a seu favor.

Somos, assim, presenteados com uma segunda ironia: a UE a procurar aplicar uma medida digna de um regime comunista, enquanto a Rússia, outrora bastião mundial do comunismo, oferece um pacote de resgate que porventura poderá melhor servir os interesses cipriotas – da mesma forma que já o havia feito com a Islândia.

Entretanto a crise que vivemos na Europa tornou evidente, citando novamente Beck, que “A Europa e a sua juventude estão unidas na raiva por causa de uma política que salva bancos com quantias de dinheiro inimagináveis, mas desperdiça o futuro da geração jovem.” A contestação vai também tendo repercussões políticas, no que concerne ao descrédito em relação aos regimes democráticos, ao reforço da retórica anti-germânica e anti-Euro e também à dispersão eleitoral provocada por partidos políticos como o Syriza, na Grécia, o United Kingdom Independence Party, no Reino Unido, e movimentos como o de Beppe Grillo, em Itália, que têm alcançado bons resultados eleitorais em virtude das suas posições contra as políticas impostas pela UE.

Vivemos uma crise sem precedentes largamente resultante da defesa cega e obstinada da moeda única, o que nos apresenta a terceira e última ironia: o Euro, que deveria ser o pináculo simbólico da paz na Europa, ameaça tornar-se a causa principal de um novo conflito armado no Velho Continente.

Muitos ainda hoje se perguntam como foi possível, num clima de prosperidade e domínio político europeu à escala mundial, que as potências europeias se tenham precipitado para a I Guerra Mundial. Esperemos que as futuras gerações não venham a colocar-se questões do mesmo género a respeito dos estranhos tempos que vivemos.