Artigo publicado no Observador, 9 de Dezembro de 2020.
A semana que passou presenteou-nos com três acontecimentos ilustrativos de algumas características da cultura portuguesa. A propósito da morte de um dos seus mais insignes pensadores, Eduardo Lourenço, o jornalista Reinaldo Serrano coroou uma série de banalidades com uma gafe que, dado ter-se tornado célebre, me dispenso de descrever. Desta releva a sempiterna propensão para a “tudologia” e superficialidade que afligem o comentariado nacional. Disponíveis para opinar sobre qualquer assunto, muitos comentadores, na sua esmagadora maioria jornalistas e políticos, independentemente da respectiva falta de conhecimento, recorrem invariavelmente a platitudes e imprecisões várias. Não parecem ter sido bafejados pela humildade intelectual de recusar perorar acerca de temas de que não são especialistas – o que, ainda assim, não afecta em nada a convicção com que o fazem. Já do lado dos receptores, a generalidade dos portugueses permanece satisfeita ou indiferente ao anémico debate público nacional. Não por acaso, o campeão nacional de “tudologia” foi catapultado pelas suas alocuções dominicais, que fizeram as delícias de milhões de portugueses durante quinze anos, para a chefia de Estado.
O segundo episódio foi a propagação, especialmente à direita, de um artigo de opinião de Walter Russell Mead, publicado no The Wall Street Journal. Mead é um reputadíssimo académico norte-americano da área científica das Relações Internacionais, mas a sua especialidade é a política externa dos EUA, não lhe sendo conhecida actividade na sub-área da economia política internacional ou na área temática da integração europeia. Isto não o impediu de censurar a retórica de António Costa a respeito do futuro da União Europeia e ecoar a narrativa de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes. De todas – e são muitas – as críticas fundamentadas que se podem dirigir a António Costa, Mead escolheu logo aquela que, parafraseando o próprio, não é uma ideia inteiramente correcta.
Conforme vários autores evidenciaram, a União Económica e Monetária (UEM) não é uma Zona Monetária Óptima e é uma união monetária incompleta – sem uma união orçamental com mecanismos de correcção de desequilíbrios nas balanças correntes e uma união fiscal que permita uma gestão macroeconómica conjunta – que retirou aos países instrumentos de política monetária autónoma, mormente a taxa de câmbio e a capacidade de emissão de moeda e controlo da massa monetária em circulação, bem como a emissão de dívida numa moeda própria – algo que Paul De Grauwe assinalou ser essencial para compreender a crise do Euro. Juntando-se a isto um Banco Central Europeu desenhado à imagem do Bundesbank – um banco central independente, com uma política monetária centrada na estabilidade de preços e na proibição do financiamento monetário dos défices públicos – bem como um Pacto de Estabilidade e Crescimento que limita os défices orçamentais a 3%, a UEM é, na verdade, um colete-de-forças. A isto acresce que o Euro é uma moeda que não reflecte a economia real dos países europeus, sendo subvalorizada para as economias do norte e sobrevalorizada para as do sul, o que potencia as exportações do norte. Em virtude das fragilidades da UEM, e dadas as consideráveis diferenças em termos de produtividade e competitividade entre os países que a compõem, estes estão sujeitos a divergentes tendências económicas, sendo os défices comerciais de uns a contrapartida dos excedentes de outros. Os países ditos frugais foram os que mais ganharam com as falhas estruturais na arquitectura da UEM. Isto explica que, durante a crise do Euro, os excedentes comerciais da Alemanha fossem os maiores do mundo. São estes excedentes que permitem a Berlim apoiar fortemente a economia germânica durante a actual crise económica resultante da pandemia. Perante esta, o suporte à economia europeia e o seu relançamento têm de ser feitos de forma coordenada e determinada entre os Estados-Membros, sob pena de acrescentar riscos desnecessários no que diz respeito ao futuro da Zona Euro e da União Europeia.
Nada disto, porém, impediu que o artigo fosse profusamente divulgado, especialmente por aqueles que nele viram espelhadas as suas convicções e uma oportunidade para criticar o Primeiro-Ministro. Não vi ninguém questionar a validade das ideias nele elaboradas nem a ausência de conhecimento especializado do seu autor no tema a respeito do qual decidiu requentar uma narrativa já amplamente desacreditada por quem se debruçou seriamente sobre a crise da Zona Euro e o futuro da União Europeia. Parecem partir do pressuposto de que se é um reputado académico estrangeiro e publica num jornal de referência, deve ter razão. Ademais, no afã de criticar o governo não há lugar ao desperdício de munições, por mais duvidosas que possam ser. Saliente-se, porém, que este traço comportamental não tem preferência ou exclusividade partidária ou ideológica, manifestando-se tanto à direita como à esquerda. Trata-se de uma prática intelectualmente pouco séria, como é quase sempre o debate político nacional, onde a guerrilha partidária e ideológica, assaz motivada por questiúnculas e animosidades pessoais, se sobrepõe fortemente à discussão racional de ideias e políticas públicas.
Aliás, esta mesma caracterização do espaço público em Portugal explica a reacção de boa parte da direita ao texto “A Clareza que defendemos”, de que fui um dos subscritores, e a subsequente discussão. Uma discussão pobre na medida em que é essencialmente motivada e informada por percepções, convicções e vieses ideológicos e psicológicos que atestam uma tormenta permanente em relação a um monstro esquerdista, seja ele do PS, do BE ou do PCP, o que justificaria todos os meios, inclusivamente entendimentos com extremismos à direita, para desalojar a esquerda do poder, bem como a fulanização do debate para atacar os que pensam de forma diferente. Não é surpreendente que escape aos defensores de tais entendimentos a evidência de que estes representam uma confissão de impotência e fracasso das actuais lideranças do PSD, CDS e IL, incapazes de se organizar, de se consagrar como oposição efectiva e de apresentar um projecto político mobilizador que atenda às prioridades do país. Para uma direita em crise que se define apenas por ser anti-esquerda, as ideias e a sua tradução em propostas políticas concretas bem discutidas e justificadas nada parecem importar em face do poder como fim em si mesmo, o que augura que se manterá dele afastada por bastante tempo.
Por último, no final da semana transacta, o país assistiu ainda ao anúncio do plano de vacinação contra a Covid-19. Um plano incipiente, cuja apresentação deixou dúvidas relativamente à logística e que suscitou diversas críticas de agentes do sector da saúde. Deixando de fora a mobilização das farmácias, de unidades de saúde do sector privado e das Forças Armadas e sobrecarregando os centros de saúde, o plano reflecte a teimosia ideológica do PS, a pouca qualidade das suas lideranças políticas em esforços de planeamento e organização e um processo decisório indigente e pouco transparente – o que tem sido, diga-se de passagem, típico nos governos nacionais independentemente dos partidos que os formam. Permeado quer pela desconfiança do sector privado, quer pelo princípio do menor esforço, relega para segundo plano o que deveria ser o objectivo principal: atingir a imunidade de grupo o mais rapidamente possível, mobilizando para tal todos os recursos à sua disposição.
Ben Clift (Comparative Political Economy, Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2014) alerta precisamente que a dicotomia entre o Estado e o mercado, dominante no debate político contemporâneo, é errada e analiticamente inútil, visto que estes estão profundamente interligados: os mercados não são fenómenos naturais, são construções políticas, são politicamente mantidos e operam em contextos sociais, históricos e culturais, não separados da restante sociedade.
Infelizmente, certas caricaturas e simplificações ideológicas do liberalismo, também ditas neo-liberais pelos seus detractores, assim como as cartilhas socialistas, reforçam a dicotomia em causa, acabando por contribuir para debates estéreis e processos decisórios e políticas públicas pouco eficientes.
Segundo Fareed Zakaria, no recentemente lançado Ten Lessons for a Post-Pandemic World (New York, W.W. Norton & Company, 2020), esta dicotomia é central na divisão entre esquerda e direita, cuja competição marcou o grande debate do século XX em torno do tamanho e papel do Estado, ou seja, a sua quantidade. Ora, aquilo que parece ser mais importante no combate à crise pandémica é a qualidade do governo, não o seu tamanho. Quer países com aparelhos governamentais bastante extensos (Alemanha, Dinamarca ou Canadá), quer países com governos de dimensão reduzida (Taiwan, Coreia do Sul, Singapura), têm lidado de forma eficiente com a pandemia. Em comum têm a boa governação, ou seja, um Estado competente, eficaz e confiável. Por outro lado, e em sentido contrário ao neo-liberalismo, Zakaria realça a sensação crescente de que os mercados não são suficientes para resolver problemas como o aumento das desigualdades e da insegurança laboral resultantes de inovações tecnológicas e da competição no contexto da globalização, sendo necessárias soluções governamentais. Os mercados são essenciais para a criação de riqueza, mas não só originam desigualdades como as suas falhas permitem que sejam alvos de tentativas de subversão que distorcem a concorrência e prejudicam as sociedades – daí a necessidade imperiosa de o Estado regular o mercado para aumentar a eficiência, promover a equidade e estimular o crescimento e a estabilidade macroeconómicos.
É necessário reequacionar a relação entre o Estado e o mercado atendendo ao actual contexto histórico, procurando combinar eficazmente as suas respectivas competências e virtudes e limitar concentrações e abusos de poder, político ou económico. É por aqui que passa a satisfação das necessidades das populações. Posto isto, não é aceitável nem justificável que o governo liderado por António Costa não se empenhe em mobilizar todos os recursos de que o país dispõe para cumprir a prioridade nacional de imunizar a maioria da população no mais curto período possível. De um governo que encomendou um plano de recuperação da economia nacional a uma única pessoa, em regime de outsourcing, não se pode esperar muito no campo do planeamento e organização logística, mas há limites para a incompetência que se tornam particularmente claros quando nos confrontamos colectivamente com uma gravíssima crise de múltiplas dimensões cuja resolução passa, em primeira instância, por uma rápida e eficaz campanha de vacinação nacional.
Em suma, no nosso país imperam a “tudologia”, um debate político pobre, uma crónica incapacidade organizacional e lideranças políticas medíocres. Continuaremos certamente a pensar a cultura portuguesa, a identidade nacional e o nosso declínio em torno de temas como o sebastianismo, o pessimismo ou a saudade, mas a causa principal do nosso atraso estrutural, na esteira do que Nuno Garoupa escreveu há quase três anos, é a infelicidade de termos elites de má qualidade. Como canta Samuel Úria, “Se fosse meritocracia/ Nem serviam para comida de cão”.