Artigo publicado no Observador, 12 de Março de 2022.
O ‘fim das ideologias’ é o título de uma obra de Daniel Bell (1988) cuja primeira edição foi publicada em 1960 e uma expressão que, pese embora tenha antecedentes em autores como Friedrich Engels, Max Weber ou Max Horkheimer e Theodor Adorno, se tornou popular no pós-II Guerra Mundial em debates entre académicos e intelectuais que, depois de terem assistido aos horrores de duas guerras mundiais, se encontravam num contexto político marcado pela emergência de um sistema internacional bipolar e da Guerra Fria.
Desdobrando-se a tese do fim das ideologias em múltiplos sentidos, como a rejeição dos totalitarismos, a desconfiança em relação a fórmulas ideológicas rígidas ou, numa concepção marxista, a “eliminação de todas as ilusões mentais que obscurecem a cognição humana” (Freeden, Sargent, and Stears 2015, 91), a sua abordagem dominante foi elaborada por autores liberais, conservadores e sociais-democratas que comungavam do anti-comunismo e da defesa da democracia liberal e se reuniram no Congresso pela Liberdade Cultural. No momento da fundação desta organização, no ano de 1950, em Berlim, o ex-comunista Arthur Koestler (autor de Darkness at Noon) sintetizou a tese principal do fim das ideologias ao declarar que dicotomias como esquerda-direita e socialismo-capitalismo haviam sido esvaziadas de significado e, portanto, perante a ameaça do expansionismo soviético, tinham deixado de fazer sentido (Freeden, Sargent, and Stears 2015, 92). As dicotomias políticas clássicas eram assim substituídas por uma outra dicotomia, entre a tirania e a liberdade, resultante da Guerra Fria. A política internacional passava então a determinar o fim do impacto prático na política doméstica dos Estados demoliberais das dicotomias e ideologias que se vinham confrontando desde a Revolução Francesa e a sua substituição pela contenda entre as democracias liberais e o totalitarismo comunista.
Reunindo autores como Michael Polanyi, Edward Shils, Raymond Aron e Bertrand Russell, o Congresso pela Liberdade Cultural representava, na verdade, um grito de guerra intelectual e cultural contra o totalitarismo comunista, depois de as democracias liberais e o totalitarismo comunista, liderado pela União Soviética, se terem aliado durante a II Guerra Mundial para derrotarem o totalitarismo nazi e fascista – não sem que, num acto de buck passing, Josef Estaline se tivesse aliado primeiro à Alemanha de Hitler por via do Pacto Ribbentrop-Molotov. O grito de guerra político e militar contra a União Soviética já havia sido dado por Winston Churchill, no seu célebre discurso no Westminster College, em Fulton (Missouri), a 5 de Março de 1946, no qual denunciou a instalação de uma Cortina de Ferro na Europa.
Na esfera da política interna das democracias liberais, durante as primeiras décadas da Guerra Fria, a tese do fim das ideologias ficou patente na convergência entre diferentes ideologias a respeito dos valores liberais e do anti-comunismo, conforme supramencionado, mas também no atinente aos modelos económicos e sociais, com o desenvolvimento do Estado-Providência, sem prejuízo das suas variantes ideológicas e regionais, a representar um autêntico avanço civilizacional. O debate sobre o fim das ideologias, porém, declinou a partir da turbulenta década de 1970, quando o consenso em torno das políticas económicas keynesianas deu lugar à ascensão das ideias neo-liberais de autores como Friedrich Hayek e Milton Friedman, que inspiraram a prática política, na década de 1980, de Ronald Reagan, nos EUA, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido.
Perante a onda revolucionária que, em 1989, levou ao fim do controlo soviético sobre os países da Europa Central e de Leste que se encontravam para lá da Cortina de Ferro, Francis Fukuyama (1989) publicou um artigo com ecos da tese do fim das ideologias, mais tarde expandido para um dos mais importantes livros do pós-Guerra Fria, The End of History and the Last Man (1992). Recuperando a ideia de ‘fim da história’ de Hegel e Alexandre Kojève, Fukuyama perspectivou que, em face do colapso da União Soviética, o modelo político da democracia liberal assente numa ordem económica capitalista representaria precisamente o culminar da história, na medida em que já não existiriam rivais ideológicos à altura do liberalismo. No fundo, tratava-se do fim das ideologias devido à vitória de uma delas.
A partir dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, a esperança da década de 1990 deu lugar ao que vários autores consideraram ser o ´regresso da história´. No século XXI, o iliberalismo (cuja ascensão Fareed Zakaria (1997) diagnosticou nas páginas da Foreign Affairs ainda na década de 1990), o islamismo (entendido por Samuel Huntington (2002), em resposta a Fukuyama, como uma ameaça civilizacional ao Ocidente), e a reemergência do autoritarismo e do populismo têm colocado desafios e ameaças à ordem liberal internacional resultante da hegemonia dos EUA e das alianças e compromissos entre as democracias liberais.
A mais recente ameaça, e provavelmente a mais grave, é a invasão da Ucrânia pela Rússia de Vladimir Putin. Esta acção insere-se no quadro de uma política externa russa apostada em reerguer o país como uma grande potência autoritária, revisionista e dotada de uma alargada esfera de influência sobre os seus países vizinhos. Ideológica e geopoliticamente, a política externa de Putin encontra respaldo no trabalho de Aleksandr Dugin, autor de A Quarta Teoria Política, obra em que elabora uma teoria política alternativa a outras três (liberalismo, marxismo e fascismo) e que, alicerçada numa mistura entre fascismo, nacionalismo, bolchevismo e misticismo russo, fundamenta uma perspectiva neo-eurasianista justificativa da anexação de todo o continente europeu pela Rússia.
Consequentemente, o Kremlin percepciona o conjunto das democracias liberais como uma ameaça existencial, pelo que se dedicou, na última década, a utilizar ferramentas tecnológicas desenvolvidas pelo Ocidente para tomar partido da abertura e tolerância das sociedades demoliberais e nestas fomentar a discórdia, a fragmentação social e a polarização política. Com este intuito, Moscovo tem apoiado e financiado movimentos e partidos políticos populistas de direita nos EUA e na Europa e quintas-colunas por vezes àqueles associadas, mas também se tem aplicado diligentemente na manipulação de informação, fabrico de desinformação, interferência em processos eleitorais e ataques cibernéticos a empresas privadas e entidades estatais – materializando recorrentes violações do princípio vestefaliano da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados. O sucesso destes esforços levou até à cunhagem de novos termos, como ´fake news´ e ´sharp power´, para representar de forma adequada os instrumentos e relações em causa.
Se dúvidas houvesse, a reacção das democracias liberais à invasão da Ucrânia revela-nos que o mundo mudou e está a mudar rapidamente. Independentemente da nossa apreciação ou vontade, há, claramente, no debate político, um antes e um depois da acção russa. Se já antes, em resultado do revisionismo da China – um Estado bem mais poderoso que o russo –, vários autores vaticinavam uma Segunda Guerra Fria, agora aprofundam-se divisões políticas, ideológicas e económicas que parecem dar-lhe forma.
Nesta conjuntura internacional, parece-nos importante questionar se não estaremos também a assistir ao regresso da tese do fim das ideologias, desta feita com base na dicotomia entre democracias liberais e regimes autoritários. Esta já era uma característica da política internacional pós-Guerra Fria, mas a interdependência económica entre as democracias liberais e, principalmente, a Rússia e a China, levou o Ocidente a lidar com uma certa bonomia com as interferências e tentativas de subversão das suas sociedades abertas. Agora que as aparências caíram por terra, somos todos, nas democracias liberais, convocados para um confronto político e ideológico. Com raras excepções, as divergências entre a esquerda e a direita parecem dar lugar a uma coesão social que se revela no apoio à Ucrânia e na consciência de que estamos perante uma ameaça existencial ao modo de vida demoliberal. A política internacional volta a definir as convergências e cisões ideológicas. O século XXI começa agora.
Referências bibliográficas
Bell, Daniel. 1988. The End of Ideology: On the Exahustion of Political Ideas in the Fifties. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.
Freeden, Michael, Lyman Tower Sargent, e Marc Stears, eds. 2015. The Oxford Handbook of Political Ideologies. Oxford: Oxford University Press.
Fukuyama, Francis. 1989. “The End of History?” National Interest, no. 16: 3–18.
———. 1992. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press.
Huntington, Samuel P. 2002. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. London: Simon & Schuster.
Zakaria, Fareed. 1997. “The Rise of Illiberal Democracy.” Foreign Affairs 76 (6): 22–43.