Artigo publicado no Observador, 16 de Setembro de 2019.
Passaram, por estes dias, 18 anos sobre o marco histórico que colocou um ponto final no exagerado optimismo verificado no pós-Guerra Fria que, durante a década de 1990, pareceu obnubilar em muitas mentes aquilo que desde sempre marcou as relações internacionais, a competição entre as grandes potências. É praticamente um truísmo afirmar que grande parte das dinâmicas da política internacional que o mundo tem vivido nos últimos anos, mormente no atinente à segurança internacional, radica precisamente nesse fatídico dia 11 de Setembro de 2001, em que o mundo assistiu horrorizado ao que muitos julgavam ser impensável, um ataque terrorista de larga escala no território dos Estados Unidos da América (EUA).
Não aborrecerei os leitores com a minha resposta à questão sobre onde estava naquele dia, que, numa altura em que tantos portugueses já não sabem sequer o que aconteceu no dia 25 de Abril de 1974, não passa de mera actualização daquela célebre pergunta de Baptista-Bastos a propósito do dia da Revolução dos Cravos. Mas talvez não seja despiciendo salientar que se este representou o início não só da transição democrática portuguesa, mas também do que Samuel Huntington chamou de “terceira vaga de democratização”, o primeiro simbolizou um ataque aos valores demo-liberais que constituem o solo político das sociedades ocidentais e que desde as Revoluções Atlânticas até aos nossos dias acabaram por se transformar, nas palavras de José Adelino Maltez, “numa espécie de património comum da humanidade, num conjunto de ideias que todos dizem defender, apesar de nem por todos serem praticadas.”
Este solo comum compõe a corrente da Teoria Política designada por liberalismo clássico. Independentemente das suas muitas ramificações, podemos enumerar as principais ideias desta corrente numa lista não exaustiva: liberdade individual (que se desdobra em várias liberdades e direitos), igualdade moral entre os indivíduos e perante a lei, governo limitado e representativo, separação de poderes, difusão de poder, rule of law (habitualmente traduzido por Estado de Direito, mas numa tradução mais fiel ao sentido original significa império ou primado da lei), propriedade privada e mercado livre. Esta teoria política, que começou por ser puramente de carácter doméstico, viria a propagar-se para a área da Teoria das Relações Internacionais, onde aquelas ideias estão na base da defesa do comércio internacional, das Organizações Internacionais, dos direitos humanos e da teoria da paz democrática. Percebe-se, assim, facilmente que no domínio teórico o liberalismo se opõe ao autoritarismo e ao totalitarismo, o que aliás se reflectiu nos conflitos entre as democracias liberais e a Alemanha Nazi, a Itália fascista, o Japão imperial e a União Soviética, embora os regimes políticos demo-liberais se vejam frequentemente na contingência de, por constrangimentos de ordem geopolítica, apoiarem regimes não-democráticos – caso do Portugal do Estado Novo, que integrou a NATO logo aquando da sua fundação, em 1949.
Ainda que a paternidade do liberalismo clássico seja atribuída a autores oriundos das Ilhas Britânicas, como John Locke ou Adam Smith, talvez nem mesmo o Reino Unido o tenha aplicado em maior grau na prática política que os EUA – desde logo no desenho da sua constituição, ou não fossem os Founding Fathers profundos conhecedores das ideias liberais. Porém, em debates sobre a competição entre democracias liberais e regimes não-democráticos, e em particular entre os EUA e a União Soviética ou, na actualidade, a Rússia e a China, raras vezes é mencionada uma ideia central do liberalismo que constitui os alicerces onde se fundamentam as acima mencionadas: a ideia e processo de crítica, mais concretamente aquilo a que Friedrich Hayek se refere como crítica imanente assente numa epistemologia que enfatiza os limites da razão e a dispersão do conhecimento por milhões de indivíduos.
É este processo que permite aos regimes demo-liberais, sociedades abertas, pluralistas e tolerantes, utilizar de forma descentralizada, não-coerciva e eficiente o conhecimento disperso pelos indivíduos – que é em grande parte tácito, prático e não passível de ser verbalizado ou reduzido a escrito –, seja no processo político, na economia de mercado ou na actividade científica. Os regimes não-democráticos, por outro lado, sendo sociedades fechadas, assentam habitualmente na planificação centralizada por um grupo de indivíduos que, dados os limites da razão e a dispersão do conhecimento, é incapaz de capturar a complexidade da realidade social e planificar a alocação de recursos de uma forma tão eficiente quanto o mercado livre, levando frequentemente à ruína de economias nacionais e ao colapso de regimes políticos, como diversas experiências históricas têm mostrado à saciedade.
A superioridade, nas mais diversas áreas, das sociedades demo-liberais em relação às não-democráticas resulta em larga medida deste processo de crítica que opera através da liberdade de expressão, do debate público, da concorrência e da inovação, permitindo às sociedades corrigirem o seu rumo com base nas experiências passadas, mudando de forma gradual, reformista ou evolucionista, não de forma revolucionária, como frequentemente acontece em sociedades fechadas.
Vem isto a propósito da minha recente participação no programa Study of the U.S. Institute (SUSI) for Scholars on U.S. Foreign Policy, um programa de diplomacia pública promovido pelo Departamento de Estado dos EUA, gerido em Portugal pela Embaixada dos EUA e pela Comissão Fulbright. Ao longo de 6 semanas, tive o privilégio de integrar um grupo de académicos de 18 países e de usufruir de um programa intensivo organizado pela Universidade do Delaware, em que dezenas de académicos e especialistas de diversas universidades, agências governamentais, empresas, organizações internacionais e think thanks abordaram variadas temáticas relacionadas com a actual agenda da política externa dos EUA.
Estes programas passam essencialmente por mostrar aos visitantes os valores basilares da sociedade que os promove, ilustram a utilização da cultura de um país como instrumento de política externa, não são politicamente controlados e são essenciais para o chamado soft power, a influência que um Estado é capaz de exercer no sistema internacional mais pela persuasão que pela força. Dado que o tema central era a política externa dos EUA, tinha a expectativa de ouvir críticas a Donald Trump, o que se confirmou. Mas vários oradores, por vezes os mesmos que teciam críticas, foram também capazes de evidenciar uma certa racionalidade nas decisões do actual Presidente dos EUA e até mesmo algumas continuidades em relação ao seu antecessor, conferindo ao programa um equilíbrio de perspectivas que é apenas normal numa sociedade fortemente pluralista. Em qualquer regime não-democrático, a imposição de uma verdade única e o medo da crítica fazem com que este tipo de programas, quando existem, sirvam essencialmente como propaganda e para escamotear a realidade.
Ainda que não deixe de ser notável e, para muitos, especialmente os que residem em sociedades fechadas, surpreendente que um país promova programas de intercâmbio educacional em que os visitantes podem assistir ao desenrolar do processo de crítica imanente e perceber como este é central no seu sistema político, para os EUA trata-se de algo tão natural quanto respirar. A força das instituições políticas e da sociedade civil reside em larga medida neste processo que permite que a mudança se dê de forma gradual, que se corrijam erros, que se implementem melhores políticas públicas e se providenciem melhores bens e serviços.
Já em 2008 Fareed Zakaria fazia notar, em O Mundo Pós-Americano, que a abertura e o vigor da sociedade civil dos EUA tornam-na especialmente apta a reinventar-se para fazer face aos mais diversos desafios. Ao mesmo tempo, afirmava ser ainda muito cedo para se saber se a China seria a primeira excepção à regra de que a abertura económica acaba por levar a reformas políticas. Num tempo de regresso à competição entre grandes potências, em que a China se assume claramente como uma potência revisionista que visa subverter a ordem internacional liberal, talvez valha a pena relembrar que a natureza de um regime político doméstico influencia as suas dinâmicas internas e estas são determinantes na evolução do seu posicionamento internacional. A tese do declínio relativo dos EUA só poderia surgir numa sociedade demo-liberal capaz de se criticar a ela própria ao mesmo tempo que continua e continuará por muito tempo a ser a principal grande potência, senão mesmo a única. Nos regimes não-democráticos, o medo de que a crítica leve à abertura da sociedade e à queda do regime precipita o mais das vezes violentas medidas de repressão, como aquelas a que o mundo tem assistido recentemente em Hong Kong e na Rússia, que frequentemente acabam por catalisar golpes de Estado e revoluções. Junte-se-lhe os receios de Pequim quanto ao abrandamento do crescimento económico e os problemas no sistema financeiro chinês devido ao endividamento excessivo, e talvez ainda venhamos a constatar que o actual regime chinês é mesmo um gigante com pés de barro.
Por ora, as notícias da transição de poder entre os EUA e a China são manifestamente exageradas, como William Wohlforth, Gideon Rose e Michael Beckley, entre outros, têm demonstrado. Mas os europeus fariam bem em recordar-se das ligações estreitas entre as suas sociedades e a dos EUA e algumas características dos regimes demo-liberais, como a limitação de mandatos dos titulares de cargos políticos e, principalmente no caso dos EUA, a existência de diversos centros de poder político sem que qualquer um consiga obter hegemonia sobre os outros, antes de embarcar em parcerias de carácter duvidoso com uma China apostada em subverter a ordem internacional em que se alicerçam as nossas sociedades.