Artigo publicado no Diário Digital, na coluna de opinião monárquica Quinta-feira, Dezembro de 2012
No meio da catástrofe que se abateu sobre Portugal e os portugueses, uma tendência fetichista com a eliminação dos feriados emerge entre os que nos vão sujeitando a uma penosa navegação à vista. Ilustrativa quanto baste da perigosidade do Leviatã e dos que o manobram praticando o velhinho princípio cesarista de divide et impera, esta tendência torna-se ainda mais preocupante quando colocada em perspectiva nos contextos da intervenção internacional a que o consulado socrático infelizmente nos trouxe e da crise da União Europeia que muitos parecem querer ultrapassar com uma fuga para a frente em direcção a um federalismo muito pouco federalista e democrático, o que me traz à memória uma célebre gaffe de João Pinto, antigo jogador do Futebol Clube do Porto: “Estávamos à beira do abismo e fizemos o que tínhamos a fazer: demos o passo em frente.”
Não constando do memorando de entendimento com a troika ou do programa do actual governo quaisquer referências à redução do número de feriados, não deixa de ser intrigante assistir a esta tendência apresentada como forma de penitência, visando a redenção perante os parceiros internacionais e ajudando a reforçar ideias perigosas como a de que em Portugal trabalha-se poucas horas, quando na verdade trabalhamos mais horas que a média europeia, ou a de que a culpa da crise que vivemos é da nossa total responsabilidade, quando se é certo que os governantes erraram em muita coisa nas últimas décadas, também não deixa de ser porque o sistema financeiro europeu e as políticas da União Europeia contribuíram em larga medida para os desvarios que nos trouxeram ao estado a que chegámos.
Primeiro foram os quatro feriados que o governo achou por bem negociar em sede de concertação social, como se esta tivesse qualquer mandato para tal – o que é revelador não só da falta de conexão entre as confederações que ali têm assento e a nação, mas também dos tiques autoritários que perpassam este governo. Há dias, foi notícia a intenção do governo de tornar o 25 de Abril um feriado de celebração opcional nas embaixadas, missões bilaterais e serviços consulares portugueses. Sendo o feriado fundacional do regime, não deixa de ser estranho que a sua celebração deixe de ser obrigatória nas representações externas do estado português, o que em conjunto com a eliminação do feriado do 1.º de Dezembro só vem agravar ainda mais a preocupante propensão para não nos darmos ao respeito na arena internacional.
Mas mais grave que isto é este fetiche parecer-me estar enquadrado no processo de apagamento da identidade portuguesa em curso, sobre o qual escrevi no início deste ano. Como se não bastasse o absurdo Acordo Ortográfico que vai desfigurando a língua portuguesa, o governo ainda se considera no direito de dispor a seu bel-prazer de celebrações de mitos que dão corpo à nossa identidade nacional, à nossa pátria, não hesitando inclusive em enveredar pelo já referido dividir para reinar, no qual caíram monárquicos e republicanos a respeito do 1.º de Dezembro e 5 de Outubro. Este processo não é fruto do mero acaso. Trata-se de um ataque despudorado ao Estado-nação, que visa abrir brechas para permitir, em primeiro lugar, o enfraquecimento e manipulação da identidade nacional, e em segundo, o reforço da lealdade e identificação com a União Europeia, o que poderá vir a reflectir-se na tentativa de implantação de uma suposta identidade supranacional que muito facilitaria o trabalho aos eurocratas que, não satisfeitos com a fragmentação a que a maioria das nações e sociedades europeias foram e estão a ser sujeitas, parecem apostados em dar o passo em frente em direcção ao abismo. Não estou com isto a dizer que a União Europeia não deve avançar no sentido de uma federação. Mas conhecendo-se o historial do método comunitário, apenas suspeito fortemente que o processo que levará a uma federação europeia aprofundará o défice democrático e terá muito pouco respeito pelas identidades nacionais.
Desenganem-se os que julgam, como salienta Pierre Manent, que uma nação “é um traje ligeiro que se possa pôr e tirar à vontade, ficando-se na mesma.” Escreve o autor francês que “Ela é esse todo no qual todos os elementos da nossa vida se reúnem e ganham sentido.” Como assinala Roger Scruton, é a cultura que nos une e a pátria é o lugar onde regressamos, nem que seja apenas em pensamento, no fim das nossas deambulações. Por mim, continuo a subscrever Pessoa quando afirma que “O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado” e apenas acrescento que a pátria está acima do estado, não podendo ser aprisionada por este nem por nenhum de nós e sendo, na realidade, o mito que fundamenta o burkeano contrato entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer. Porque recordando ainda Miguel Torga, a pátria é “o espaço telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre humana e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto sossega, a sua inteligência fulgura, o seu passado tem sentido e o seu presente tem futuro.”
Que actualmente sejamos liderados por um governo que tem revelado esforços muito tímidos quanto a fazer aquilo para que foi eleito e que ambos os partidos da coligação prometeram em campanha eleitoral – reformar o estado –, preferindo a velha e estafada receita do aumento de impostos, parece-me ser uma vicissitude de um regime democrático, que não deixa de reforçar o descrédito dos agentes políticos e, consequentemente, do regime. Mas que numa das mais graves horas que enfrentamos colectivamente, ainda sejamos sujeitos a uma ofensiva anti-patriótica, é somente trágico.