Artigo publicado no N.º 7 do Correio Real, Abril de 2012
Recentemente, veio-me à memória uma aula de 2008 em que um conhecido professor da nossa praça dizia que as crises de identidade são características de nações com hiper-identidade. Estamos sempre a falar da nossa identidade precisamente por termos identidade a mais. A nossa longa História nacional tem um peso enorme sobre os nossos ombros, hoje obrigados ao temor reverencial troikista. O nosso passado é de uma grandeza que nos faz sentir como pigmeus, muitas vezes deixando-nos sem saber como lidar com ele. Daí o nosso eterno retorno mental e retórico às épocas áureas do domínio português sobre mares de todo o mundo. Daí, em parte, a nossa servidão voluntária quando nos pretendem impor ideias que são simplesmente páginas novas no processo de apagamento da identidade portuguesa em curso. Vem isto a propósito de um ataque do rolo unidimensionalizador do estado, que encontra quase sempre, infelizmente, uma enorme passividade da sociedade portuguesa em relação aos ataques por ele prosseguidos.
Como não poderia deixar de ser, refiro-me à recentemente anunciada extinção da celebração do dia da Restauração da Independência, assim como do dia da Implantação da República. Por mais que não celebre o 5 de Outubro, infelizmente não partilho da alegria que parece ter acometido alguns monárquicos a respeito da extinção do 5 de Outubro. Primeiro, porque quando a extinção da celebração do 1.º de Dezembro já havia sido anunciada, nada mais restava ao governo senão extinguir também o 5 de Outubro; não o fazer seria ainda mais escandaloso, mas ter extinguido os dois é um acto de violência perpetrado sobre todos nós, portugueses – era uma situação de perda para todos, logo à partida, pelo que o melhor seria nunca ter acontecido. Segundo, porque esta questão está envolta numa demagogia ignóbil passada como economicismo pelos aprendizes de Maquiavel, como se esta história dos feriados fosse realmente resolver os problemas do país quando o estado continua a endividar-se e a gastar demasiado dinheiro dos contribuintes e sem ser verdadeiramente reformado. Terceiro, porque acabámos todos a ser gozados pelo governo vigente, onde o dividir para reinar parece ser mote levado à letra no processo de gaspar-alvarização em curso. Infelizmente, passou a ser mais importante para alguns monárquicos celebrar a extinção do 5 de Outubro do que tentar preservar o 1.º de Dezembro, assim como para alguns republicanos o contrário também é verdade, quando dever-nos-íamos, todos, ter unido contra o Leviatã, porque, e em quarto lugar e o mais importante, não compete ao governo, ou pelo menos não deveríamos deixar que lhe competisse, dispor como bem entender de celebrações que pertencem ao domínio da sociedade, que são reflexo dos mitos com que inventámos a nossa nação. Citando Passos Manuel, “Antes de eu ser de esquerda, ou de direita, já era da Pátria. A Pátria é a minha política.”
Relembrando Jacques Le Goff, sabemos que é na memória que cresce a história, e um povo sem memória é um povo sem futuro, pelo que importa não esquecer a nossa tradição e salientar, de acordo com José Adelino Maltez no seu recente Abecedário Simbiótico, que «Ser pela tradição é saber recuar, em pensamento e em entusiasmo, para, aprofundando o presente, dar raízes ao futuro, e melhor se poder avançar (…).» Com saudades de futuro, neste nosso Portugal por cumprir, há que continuar a ser livre, isto é, a dizer não, porque a essência do homem livre é ser do contra – não renunciando, antes pelo contrário, à participação cívica. Como assinalou Camus, a revolta surge do espectáculo do irracional a par com uma condição injusta e incompreensível. Perante o ataque desferido, muitos continuam a não compreender Fernando Pessoa quando este nos diz que «O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado». Compete-nos fazer os possíveis e impossíveis para acabar com esta violência sobre todos nós.