Do reaccionarismo da direita da “Identidade e Família”

Agora que a poeira assentou, aqui ficam algumas considerações acerca da polémica em torno da publicação do livro Identidade e Família:

1 – Comungando a totalidade dos autores do livro da doutrina católica, destacam-se alguns deles por o seu pensamento político ser classificado pelos próprios e por terceiros como “conservador”, casos de Paulo Otero, João César das Neves, Jaime Nogueira Pinto e Gonçalo Portocarrero de Almada.

2 – Sendo certo que existem duas grandes correntes do conservadorismo – teoria política cujo berço (e local onde foi mais desenvolvida) é a Grã-Bretanha -, uma com um substrato religioso e outra de teor secular, no nosso país, o conservadorismo tem revolvido, ao longo das últimas décadas, em torno da doutrina social da Igreja Católica, da democracia cristã e de temas como o saudosismo do Estado Novo, a crítica ao 25 de Abril de 1974 e a oposição ao liberalismo e ao socialismo nas suas várias declinações, que se reflecte, por exemplo, na oposição à interrupção voluntária da gravidez, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à co-adopção por estas e à eutanásia. Fundamentalmente, estamos em presença de um conservadorismo católico.

3 – É completamente estranho ao pensamento de vários conservadores portugueses o pensamento de autores como David Hume, Edmund Burke ou Michael Oakeshott. Sinteticamente, estes últimos dão voz a um conservadorismo que aceita a mudança contanto que seja resultante da evolução orgânica da sociedade, gradual e reformista, não revolucionária, total e ideologicamente guiada. Para esta corrente, que alguns classificam como sendo um conservadorismo liberal, a mudança deve ainda resultar de necessidades concretas e não de princípios abstractos alcançados por uma razão dedutiva e apriorística, i.e., pelo que Oakeshott, Popper ou Hayek classificaram como racionalismo dogmático ou construtivista. Por outras palavras, é uma teoria política herdeira das Revoluções Inglesa e Americana e crítica da Revolução Francesa, sendo ainda hoje o substrato ideológico do Partido Conservador do Reino Unido.

4 – Esta corrente, como explica Oakeshott, não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo”, que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador”.

5 – O pensamento plasmado nos artigos de alguns dos autores do mencionado livro, por seu lado, assenta em crenças religiosas e morais e visa restaurar uma determinada concepção de sociedade reminiscente do Estado Novo. Pretende repudiar regras de conduta gerais e abstractas desenvolvidas através da evolução cultural da sociedade portuguesa que têm a liberdade individual e a possibilidade de escolha no seu cerne e substituí-las por uma visão ancorada numa doutrina e crença religiosa que prescreve condutas específicas e substantivas e não é partilhada por todos os cidadãos. Tem como objectivo substituir uma perspectiva liberal e pluralista de sociedade, em que não existe uma verdade única e é deixada aos indivíduos a capacidade de prosseguirem diversas concepções de vida boa, por uma ortodoxia pública imposta pelo Estado alicerçada numa única definição do que constitui uma vida boa, reduzindo a esfera de liberdade de todos os cidadãos.

6 – A visão de sociedade patente em vários destes artigos implica, consequentemente, uma oposição a mudanças que ocorreram de forma evolucionista e gradual na sociedade portuguesa ao longo de 50 anos, tendo sido possibilitadas pelo 25 de Abril de 1974. Estamos perante um pensamento contra-revolucionário e providencialista – próximo de Joseph de Maistre e Louis de Bonald -, que se reflecte num conservadorismo autoritário que pode e deve ser definido numa única palavra: reaccionário.

7 – Este pensamento reaccionário critica o que classifica como “ideologia de género” partindo da premissa de que o que considera ser a “família natural” é a única concepção legítima de família, dela derivando o conteúdo normativo do que pretende impor autoritariamente a toda a sociedade, sendo todas as outras concepções consideradas desvios patológicos produzidos pela modernidade ou pelo pós-modernismo. Para além de não aceitarem mudanças produzidas pelo curso natural e gradual da evolução social, acreditam que a sua concepção de família é ideologicamente neutra, como se não fosse ela própria uma ideologia de género, uma visão ideológica dos papéis de género e da sexualidade. Talvez falte aos seus cultores capacidade para apreciar esta ironia.

8 – Para finalizar, perdoem-me a deselegância de citar um artigo da minha autoria, escrito a propósito do combate que muitas das figuras desta direita reacionária promoveram à disciplina de Educação para a Cidadania, que, infelizmente, retém actualidade:

Todavia, esta ideia não chega a ser surpreendente, porquanto boa parte da direita, naquilo que vê como um combate cultural gramsciano, acolhe uma inversão entre as matérias onde o primado da comunidade política se impõe e aquelas onde a esfera da liberdade individual deveria tomar preeminência. É uma marca característica desta direita, por um lado, recomendar a liberdade de escolha em áreas como a educação, a saúde e a segurança social com propostas de políticas públicas que serviriam essencialmente os interesses das classes sociais privilegiadas à custa do bem comum, e, por outro, defender a imposição a todos os cidadãos, pela coerção estatal, de uma visão do mundo alicerçada em larga medida na religião católica em matérias eminentemente do foro da liberdade individual e da esfera privada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a despenalização do aborto e a eutanásia.
Por outras palavras, nuns dias são liberais que acolhem a separação entre sociedade civil e Estado e clamam contra a intromissão deste e da ideologia em domínios em que, por definição, o aparelho político tem de tomar opções políticas e ideológicas, e noutros prosseguem a herança do absolutismo para defender a imposição de uma perspectiva ideológica em matérias em que o Estado se deveria limitar a respeitar o foro privado e a liberdade individual.

Diz que o islão é uma religião de paz

O Papa Francisco afirmou há dias que o Corão é um livro de paz e que o islão não é uma religião violenta. Entretanto, na Indonésia, o cristão governador de Jakarta que vai hoje a eleições enfrenta a fúria dos que querem vê-lo condenado em tribunal por blasfémia, ou seja, por alegadamente ter insultado o islão, apesar de 88% dos indonésios admitirem que não sabem ao certo o que Basuki Purnama Tjahaja terá dito.

Multiculturalismo e imigração

Roger Scruton, How to be a conservative (London: Bloomsbury Publishing Plc, 2014), 90-92:

Once we distinguish race and culture, the way is open to acknowledge that not all cultures are equally admirable, and that not all cultures can exist comfortably side by side. To deny this is to forgo the very possibility of moral judgement, and therefore to deny the fundamental experience of community. It is precisely this that has caused the multiculturalists to hesitate. It is culture, not nature, that tells a family that their daughter who has fallen in love outside the permitted circle must be killed, that girls must undergo genital mutilation if they are to be respectable, that the infidel must be destroyed when Allah commands it. You can read about those things and think they belong to the pre-history of our world. But when suddenly they are happening in your midst, you are apt to wake up to the truth about the culture that advocates them. You are apt to say, that is not our culture, and it has no business here. And you will probably be tempted to go one stage further, the stage that the Enlightenment naturally invites, and to say that it has no business anywhere.

For what is brought home to us, through painful experiences that we might have avoided had it been permitted before now to say the truth, is that we, like everyone else, depend upon a shared culture for our security, our prosperity and our freedom to be. We don’t require everyone to have the same faith, to lead the same kind of family life or to participate in the same festivals. But we have a shared civic culture, a shared language and a shared public sphere. Our societies are built upon the Judaeo-Christian ideal of neighbour-love, according to which strangers and intimates deserve equal concern. They require each of us to respect the freedom and sovereignty of every person, and to acknowledge the threshold of privacy beyond which it is a trespass to go unless invited. Our societies depend upon law-abidingness and open contracts, and they reinforce these things through the educational traditions that have shaped our common curriculum. It is not an arbitrary cultural imperialism that leads us to value Greek philosophy and literature, the Hebrew Bible, Roman law, and the medieval epics and romances and to teach these things in our schools. They are ours in just the way that the legal order and the political institutions are ours: they form part of what made us, and convey the message that it is right to be what we are. And reason endorses these things, and tells us that our civic culture is not just a parochial possession of inward-looking communities, but a justified way of life.

Over time, immigrants can come to share these things with us: the experience of America bears ample witness to this. And they more easily do so when they recognize that, in any meaningful sense of the word, our culture is also a multi-culture, incorporating elements absorbed in ancient times from all around the Mediterranean basin and in modern times from the adventures of European traders and explorers across the world. But this kaleidoscopic culture is still one thing, with a set of inviolable principles at its core; and it is the source of social cohesion across Europe and America. Our culture allows for a great range of ways of life; it enables people to privatize their religion and their family customs, while still belonging to the public realm of open dealings and shared allegiance. For it defines that public realm in legal and territorial terms, and not in terms of creed or kinship.

So what happens when people whose identity is fixed by creed or kinship immigrate into places settled by Western culture? The activists say that we must make room for them, and that we do this by relinquishing the space in which their culture can flourish. Our political class has at last recognized that this is a recipe for disaster, and that we can welcome immigrants only if we welcome them into our culture, and not beside or against it. But that means telling them to accept rules, customs and procedures that may be alien to their old way of life. Is this an injustice? I do not think that it is. If immigrants come it is because they gain by doing so. It is therefore reasonable to remind them that there is also a cost. Only now, however, is our political class prepared to say so, and to insist that cost be paid.

A Europa inimiga de si própria

Charles Hill, “Islamism Implacable”:

Put simply, the European Union made itself the epitome of the Modern Age by relentless secularization. Islamism, emerging from the post–World War I collapse of the Ottoman empire and caliphate, made itself the vanguard of jihadist religion’s rise to become the implacable adversary of modernity. If Europe is where the siege is to take place, the drawbridge already is up: Islamism abhors the state; the EU has emasculated it.

Islamism recognizes only one border: between itself and regions yet to become Muslim; Europe has opened its borders to the point of abolishing the concept altogether.

Islamism regards democracy as un-Islamic because it enacts laws other than sharia; the European Union from its inception has acted assiduously to prevent people from governing themselves democratically.

Islamists, like Machiavelli, know that armed prophets are victorious and unarmed prophets are destroyed; the European Union has deliberately diminished its capacities to defend itself or to back its diplomacy with strength.

And while Islamists declare religion to be the answer, the EU has seen religion as the problem. As Pierre Manent has pointed out, had Europeans maintained their identity as sovereign states with a Christian heritage, the assimilation of Muslims could have been possible on the basis of comity,  whereas now it lacks an answer to “assimilation to what?”

Americans need to understand that the Modern Age with its pluralistic structures, societies, and beliefs is under assault and that the enemies of modernity are uniate, unwilling to accept others on an equal basis. In this context America’s involvement in the Middle East must take the side of pluralistic states and parties compatible with the international system.

Only Europeans can rectify the flaws in the European Union’s design to enable Europe to act on the world stage as a bordered state incorporating its historic nation-states in confederation. And only Europeans can attend to the needs of the European soul.

But however the relationship between Britain and Europe comes out, the United States must regard its relations with both as “special.” Transatlantic unity has been the keystone of the defense and extension of freedom in war-time for a hundred years and must remain so.

It is not the European Union but NATO that has been the key to transatlantic solidarity. Strengthening NATO as a military alliance with political consequences in support of a reformed European Union must be at the core of American policy. NATO’s role “out of area” will be vital along with continued efforts to integrate like-minded partners to the extent possible: Russia, Israel, the gulf Arab states. The Modern Age itself is at stake.