Do reaccionarismo da direita da “Identidade e Família”

Agora que a poeira assentou, aqui ficam algumas considerações acerca da polémica em torno da publicação do livro Identidade e Família:

1 – Comungando a totalidade dos autores do livro da doutrina católica, destacam-se alguns deles por o seu pensamento político ser classificado pelos próprios e por terceiros como “conservador”, casos de Paulo Otero, João César das Neves, Jaime Nogueira Pinto e Gonçalo Portocarrero de Almada.

2 – Sendo certo que existem duas grandes correntes do conservadorismo – teoria política cujo berço (e local onde foi mais desenvolvida) é a Grã-Bretanha -, uma com um substrato religioso e outra de teor secular, no nosso país, o conservadorismo tem revolvido, ao longo das últimas décadas, em torno da doutrina social da Igreja Católica, da democracia cristã e de temas como o saudosismo do Estado Novo, a crítica ao 25 de Abril de 1974 e a oposição ao liberalismo e ao socialismo nas suas várias declinações, que se reflecte, por exemplo, na oposição à interrupção voluntária da gravidez, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à co-adopção por estas e à eutanásia. Fundamentalmente, estamos em presença de um conservadorismo católico.

3 – É completamente estranho ao pensamento de vários conservadores portugueses o pensamento de autores como David Hume, Edmund Burke ou Michael Oakeshott. Sinteticamente, estes últimos dão voz a um conservadorismo que aceita a mudança contanto que seja resultante da evolução orgânica da sociedade, gradual e reformista, não revolucionária, total e ideologicamente guiada. Para esta corrente, que alguns classificam como sendo um conservadorismo liberal, a mudança deve ainda resultar de necessidades concretas e não de princípios abstractos alcançados por uma razão dedutiva e apriorística, i.e., pelo que Oakeshott, Popper ou Hayek classificaram como racionalismo dogmático ou construtivista. Por outras palavras, é uma teoria política herdeira das Revoluções Inglesa e Americana e crítica da Revolução Francesa, sendo ainda hoje o substrato ideológico do Partido Conservador do Reino Unido.

4 – Esta corrente, como explica Oakeshott, não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo”, que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador”.

5 – O pensamento plasmado nos artigos de alguns dos autores do mencionado livro, por seu lado, assenta em crenças religiosas e morais e visa restaurar uma determinada concepção de sociedade reminiscente do Estado Novo. Pretende repudiar regras de conduta gerais e abstractas desenvolvidas através da evolução cultural da sociedade portuguesa que têm a liberdade individual e a possibilidade de escolha no seu cerne e substituí-las por uma visão ancorada numa doutrina e crença religiosa que prescreve condutas específicas e substantivas e não é partilhada por todos os cidadãos. Tem como objectivo substituir uma perspectiva liberal e pluralista de sociedade, em que não existe uma verdade única e é deixada aos indivíduos a capacidade de prosseguirem diversas concepções de vida boa, por uma ortodoxia pública imposta pelo Estado alicerçada numa única definição do que constitui uma vida boa, reduzindo a esfera de liberdade de todos os cidadãos.

6 – A visão de sociedade patente em vários destes artigos implica, consequentemente, uma oposição a mudanças que ocorreram de forma evolucionista e gradual na sociedade portuguesa ao longo de 50 anos, tendo sido possibilitadas pelo 25 de Abril de 1974. Estamos perante um pensamento contra-revolucionário e providencialista – próximo de Joseph de Maistre e Louis de Bonald -, que se reflecte num conservadorismo autoritário que pode e deve ser definido numa única palavra: reaccionário.

7 – Este pensamento reaccionário critica o que classifica como “ideologia de género” partindo da premissa de que o que considera ser a “família natural” é a única concepção legítima de família, dela derivando o conteúdo normativo do que pretende impor autoritariamente a toda a sociedade, sendo todas as outras concepções consideradas desvios patológicos produzidos pela modernidade ou pelo pós-modernismo. Para além de não aceitarem mudanças produzidas pelo curso natural e gradual da evolução social, acreditam que a sua concepção de família é ideologicamente neutra, como se não fosse ela própria uma ideologia de género, uma visão ideológica dos papéis de género e da sexualidade. Talvez falte aos seus cultores capacidade para apreciar esta ironia.

8 – Para finalizar, perdoem-me a deselegância de citar um artigo da minha autoria, escrito a propósito do combate que muitas das figuras desta direita reacionária promoveram à disciplina de Educação para a Cidadania, que, infelizmente, retém actualidade:

Todavia, esta ideia não chega a ser surpreendente, porquanto boa parte da direita, naquilo que vê como um combate cultural gramsciano, acolhe uma inversão entre as matérias onde o primado da comunidade política se impõe e aquelas onde a esfera da liberdade individual deveria tomar preeminência. É uma marca característica desta direita, por um lado, recomendar a liberdade de escolha em áreas como a educação, a saúde e a segurança social com propostas de políticas públicas que serviriam essencialmente os interesses das classes sociais privilegiadas à custa do bem comum, e, por outro, defender a imposição a todos os cidadãos, pela coerção estatal, de uma visão do mundo alicerçada em larga medida na religião católica em matérias eminentemente do foro da liberdade individual e da esfera privada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a despenalização do aborto e a eutanásia.
Por outras palavras, nuns dias são liberais que acolhem a separação entre sociedade civil e Estado e clamam contra a intromissão deste e da ideologia em domínios em que, por definição, o aparelho político tem de tomar opções políticas e ideológicas, e noutros prosseguem a herança do absolutismo para defender a imposição de uma perspectiva ideológica em matérias em que o Estado se deveria limitar a respeitar o foro privado e a liberdade individual.

In Memoriam – Sir Roger Scruton (1944-2020)

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Há 8 anos tive o privilégio de assistir a uma conferência de Sir Roger Scruton, em Lisboa, dedicada essencialmente à temática do Estado-nação como resposta às crises que vamos vivendo e em que o filósofo britânico não deixou de tecer críticas ao processo de integração europeia, um tema recorrente nas suas reflexões e a que dedicou parte de um dos livros que mais o deu a conhecer em Portugal, As Vantagens do Pessimismo. Diria até que se Nigel Farage, Boris Johnson e Dominic Cummings foram os principais artífices do Brexit na praxis política, Scruton terá sido quem mais fez por esta causa no plano das ideias, especialmente atendendo à sua apaixonada defesa de uma certa ideia de Inglaterra que tantas vezes lhe causou dissabores ao longo da sua tumultuosa carreira académica. Da conferência em Lisboa, guardo a memória não só do seu brilhantismo intelectual, mas da sua simpatia e genuíno gosto pelo debate de ideias, numa tarde em que se dispôs a partilhar as suas reflexões com uma dúzia de académicos portugueses, alguns dos quais, aliás, se têm dedicado a estudar o seu pensamento – como é, de resto, o meu caso, figurando Scruton como um dos autores conservadores cujas ideias sobre os conceitos de tradição, razão e mudança analisei na minha tese de doutoramento.

Tratando-se de um herdeiro de Burke e de Hegel, de um crítico do liberalismo mas que coincide parcialmente com autores como Hayek (outro herdeiro de Burke) no que à teoria social concerne, Scruton é um dos pensadores contemporâneos responsáveis por desconstruir o mito de que ser conservador é igual a ser-se imobilista. Só um incauto poderia ser surpreendido pela sua afirmação tipicamente burkeana, em How to be a Conservative, de que o “desejo de conservar é compatível com toda a forma de mudança, desde que a mudança também seja continuidade”. Dificilmente se pode concordar com tudo no seu pensamento – é, também, o meu caso -, ainda para mais tratando-se de um autor tão prolífico, mas é impossível lermos Scruton e não nos sentirmos desafiados e estimulados a reflectir sobre os mais diversos temas. A minha evolução intelectual é parcialmente devedora do seu trabalho, que me permitiu compreender melhor as falhas do liberalismo e as potencialidades do conservadorismo, quer na teoria quer na acção política. A sua morte, hoje, aos 75 anos, é uma notícia triste e representa uma perda inestimável para a reflexão política dos conservadores – bem como dos seus adversários, alguns dos quais analisados em Fools, Frauds and Firebrands, uma das suas obras mais polémicas e cuja primeira edição, em 1985, com o título Thinkers of the New Left, lhe valeu o repúdio de boa parte da academia britânica. Afinal, numa época de ortodoxias e dogmatismos vários, à esquerda e à direita, a sua moderação foi quase sempre vista como herética. Partiu prematuramente, mas o seu trabalho e as suas ideias continuarão a florescer e a resistir ao teste do tempo.

Nesta hora, e para terminar, permitam-me relembrar o que creio ser uma das passagens mais emblemáticas de How to be a Conservative e que resume a sua posição moderada a respeito do papel do Estado. Para Scruton, e em tradução livre da minha lavra, este

é, ou deve ser, tanto menos do que os socialistas requerem, e mais do que os liberais clássicos permitem. O Estado tem um objectivo, que é proteger a sociedade civil dos seus inimigos externos e das suas desordens internas. Não pode ser meramente o Estado ‘night watchman’ defendido por Robert Nozick, visto que a sociedade civil depende de relações que devem ser renovadas e, nas circunstâncias modernas, estas relações não podem ser renovadas sem a provisão colectiva do bem-estar. Por outro lado, o Estado não pode ser o fornecedor e regulador universal proposto pelos igualitários, visto que o valor e o compromisso emergem das associações autónomas, que florescem apenas se puderem crescer de baixo. Ademais, o Estado só pode redistribuir riqueza se a riqueza for criada e a riqueza é criada por aqueles que esperam ter uma parte dela.”

Descanse em paz, Sir Roger Scruton.

Lançamento do livro “Tradição, Razão e Mudança” – UBI, Covilhã

No seguimento do meu post anterior, renovo o convite para estarem presentes numa das sessões de lançamento do meu livro, desta feita deixando a imagem do convite para a sessão a ter lugar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade da Beira Interior, no dia 11 de Dezembro, pelas 14h30, no anfiteatro 7.22, bem como a ligação para a respectiva página do evento no Facebook.

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Lançamento do livro “Tradição, Razão e Mudança” – ISCSP, Lisboa

A minha tese de doutoramento, subordinada à temática “Tradição, Razão e Mudança”, conceitos abordados à luz de ideias liberais, conservadoras e comunitaristas, será publicada nos próximos dias pela Edições Esgotadas e terá uma sessão de lançamento em Lisboa, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, a 5 de Dezembro, pelas 19h00, e outra na Covilhã, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade da Beira Interior, a 11 de Dezembro, pelas 14h30.

É com muito gosto que vos convido a estarem presentes, aproveitando a oportunidade para vos persuadir com as apresentações a cargo do Professor Doutor José Adelino Maltez, da Professora Doutora Cristina Montalvão Sarmento e da Dr.ª Ana Rodrigues Bidarra, autores, respectivamente, dos dois prefácios e do posfácio, bem como com a belíssima ilustração da capa da obra, onde figura um quadro do Dr. Nuno Castelo-Branco apropriadamente intitulado “O Fim do Ocidente”.

Aqui ficam a imagem e a ligação para página da primeira sessão de lançamento. Em breve partilharei a imagem e a página da segunda sessão.

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Das ondas de indignação nas redes sociais

Byung Chul-Han, No Enxame:

As ondas de indignação são extremamente eficazes na mobilização e aglutinação da atenção. Mas, devido ao seu carácter fluido e à sua volatilidade, não são adequadas para a configuração do discurso público, do espaço público. São, para esse efeito, demasiado incontroláveis, incalculáveis, instáveis, efémeras e amorfas. Crescem subitamente e desfazem-se com a mesma rapidez. O que as assemelha às smart mobs (“multidões inteligentes”). Carecem da estabilidade, da constância e da continuidade indispensáveis ao discurso público. Não é possível integrá-las num contexto discursivo estável. As ondas de indignação surgem, muitas vezes, perante acontecimentos cuja importância social é bastante reduzida.

A sociedade da indignação é uma sociedade do escândalo. É desprovida de firmeza, de contenção. A rebeldia, a histeria e a obstinação peculiares das ondas de indignação não permitem qualquer comunicação discreta e objectiva, qualquer diálogo, qualquer debate. Ora, a contenção é constitutiva da esfera pública. E a formação do público requer a distância. Além disso, as ondas de indignação só em escassa medida são identificáveis com a comunidade. Por isso, não constroem um nós estável que exprima uma estrutura do cuidado do social no seu conjunto. E, do mesmo modo, a preocupação dos indignados pouco afecta a sociedade no seu conjunto, porque exprime, em grande medida, um cuidado de si. Daí que, de novo, rapidamente se dissipe.

A primeira palavra da Ilíada é menin – ou seja, a cólera. “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida”, lemos no início da primeira narrativa da cultura ocidental. Aqui, a cólera pode cantar-se porque suporta, estrutura, anima e vitaliza. É o meio heróico por excelência da acção. A Ilíada é um canto da cólera. Trata-se de uma ira narrativa, épica, porque produz certas acções. Distingue-se por isso da fúria que surge como efeito das ondas de indignação. A indignação digital não pode cantar-se. Não é capaz nem de acção nem de narração. É, antes, um estado afectivo que não desenvolve qualquer força potente de acção. A distracção generalizada, característica da sociedade actual, não permite a emergência da energia épica da ira. A cólera, na plenitude do seu sentido, é mais do que um estado afectivo. É a capacidade de interromper um estado de coisas existente e de fazer começar um novo estado de coisas. A actual multidão indignada é extremamente fugaz e dispersa. Falta-lhe por completo a massa, a gravidade, necessária à acção. Não engendra qualquer futuro.

Gritar à toa

Sonho com o dia em que a diferença salarial média entre homens e mulheres se inverta em favor das mulheres e o número de mulheres em cargos políticos e públicos e de direcção no sector privado seja superior ao dos homens. Primeiro, porque, embora se trate de uma realidade em que gostaria de viver, especialmente considerando que durante a esmagadora maioria da história da humanidade as mulheres foram e continuam a ser discriminadas de formas abjectas, repulsivas e sem qualquer justificação, perceberíamos todos que nem assim se conseguiria ultrapassar falhas características da cultura de cada corpo político. Segundo, e mais importante, porque deixaríamos de assistir ao chinfrim que os guerreiros pela igualdade de género a todo o custo teimam em produzir vociferando os seus preconceitos ideológicos assentes numa concepção profundamente errada da condição humana e numa compreensão débil dos fenómenos sociais, decorrentes do racionalismo construtivista. O que não quer dizer que, entretanto, não encontrem outras causas a que possam dedicar os seus esforços. Afinal, o racionalismo construtivista talvez nunca tenha tido um solo tão fértil como as hodiernas sociedades demo-liberais onde, infelizmente, a política da cartilha ideológica se sobrepôe à política enquanto conversação e acomodação de diferentes perspectivas. Como canta Samuel Úria numa belíssima crítica à primeira, Repressão!/ Repressão!/ Grita-se à toa/ Qualquer causa é boa num refrão.

Em defesa da hierarquia

Vários autores, “In defence of hierarchy”:

On the other hand, the idea of a purely egalitarian world in which there are no hierarchies at all would appear to be both unrealistic and unattractive. Nobody, on reflection, would want to eliminate all hierarchies, for we all benefit from the recognition that some people are more qualified than others to perform certain roles in society. We prefer to be treated by senior surgeons not medical students, get financial advice from professionals not interns. Good and permissible hierarchies are everywhere around us.

Yet hierarchy is an unfashionable thing to defend or to praise. British government ministers denounce experts as out of tune with popular feeling; both Donald Trump and Bernie Sanders built platforms on attacking Washington elites; economists are blamed for not predicting the 2008 crash; and even the best established practice of medical experts, such as childhood vaccinations, are treated with resistance and disbelief. We live in a time when no distinction is drawn between justified and useful hierarchies on the one hand, and self-interested, exploitative elites on the other.

(…).

All of this takes on a new urgency given the turn in world politics towards a populism that often attacks establishment hierarchies while paradoxically giving authoritarian power to individuals claiming to speak for ‘the people’.

(…).

Apart from their civic importance, hierarchies can be surprisingly benign in life more broadly. Hierarchy is oppressive when it is reduced to a simple power over others. But there are also forms of hierarchy that involve power with, not over. Daoism characterises this kind of power effectively in the image of riding a horse, when sometimes you have to pull, and sometimes let go. This is not domination but negotiation. In Daoism, power is a matter of energy and competence rather than domination and authority. In this sense, a hierarchy can be empowering, not disabling.

Take the examples of good relationships between parents and children, teachers and students, or employers and employees. These work best when the person higher in the hierarchy does not use that position to dominate those lower down but to enable them to grow in their own powers.

(…).

As well as being empowering, hierarchies should be dynamic over time. Hierarchies are often pernicious not because they distinguish between people, but because they perpetuate these distinctions even when they are no longer merited or serve a good purpose. In short, hierarchies become ossified. There might be reasons, for example, to appoint people on merit to positions of power, such as to Britain’s House of Lords. Historically, however, this has often led to people not only retaining that power when they have ceased to deserve it personally, but also passing it on to their children. All legitimate hierarchies must allow for changes over time in order for them not to lead to the unjust accumulation of power. This is built into the age-based hierarchies endorsed by Confucians, since the young will eventually rise to take on the elevated status and authority of the old.

(…).

Paternalistic hierarchy might then benefit individual autonomy. And hierarchy has one final benefit. Although it would seem to be divisive, hierarchy can promote social harmony. Many cultures justifiably place a high value on communal harmony. This involves a shared way of life, and also sympathetic care for the quality of life of others. Excessive hierarchy works against this, creating divisions within societies. Indeed, in a sense, hierarchy always brings with it the threat of tension, since it is a condition in which one adult commands, threatens or forces another to do something, where the latter is innocent of any wrongdoing, competent to make decisions, and not impaired at the time by alcohol, temporary insanity, or the like. But the goal of preserving communal life means that hierarchy might be justifiable if – and only if – it is the least hierarchical amount required, and likely either to rebut serious discord or to foster a much greater communion. This is a minimalist justification that only ever sanctions the least amount of hierarchy necessary.

(…).

Some of these ideas about hierarchy will no doubt be received more favourably than others. There will also be disagreement – as there is among ourselves – about whether we simply need to be clearer about the value of some hierarchies, or whether we need more of them in certain domains. Hierarchy has been historically much-abused and it is the understandable fear of being too enthusiastic about hierarchy that makes some queasy about talking about its merits. Nonetheless, we think it important to put these ideas forward as an invitation to begin a much-needed conversation about the role of hierarchy in a world that is in many ways now fundamentally egalitarian, in that it gives equal rights and dignity to all. However, it clearly does not and cannot give equal power and authority to all. If we are to square the necessary inequality that the unequal distribution of power entails with the equally necessary equality of value we place on human life, it’s time to take the merits of hierarchy seriously.

Sobre o futuro da ideia de inteligência

Stephen Cave, “Intelligence: a history”:

So when we reflect upon how the idea of intelligence has been used to justify privilege and domination throughout more than 2,000 years of history, is it any wonder that the imminent prospect of super-smart robots fills us with dread?

From 2001: A Space Odyssey to the Terminator films, writers have fantasised about machines rising up against us. Now we can see why. If we’re used to believing that the top spots in society should go to the brainiest, then of course we should expect to be made redundant by bigger-brained robots and sent to the bottom of the heap. If we’ve absorbed the idea that the more intelligent can colonise the less intelligent as of right, then it’s natural that we’d fear enslavement by our super-smart creations. If we justify our own positions of power and prosperity by virtue of our intellect, it’s understandable that we see superior AI as an existential threat.

(…).

We would do better to worry about what humans might do with AI, rather than what it might do by itself. We humans are far more likely to deploy intelligent systems against each other, or to become over-reliant on them. As in the fable of the sorcerer’s apprentice, if AIs do cause harm, it’s more likely to be because we give them well-meaning but ill-thought-through goals – not because they wish to conquer us. Natural stupidity, rather than artificial intelligence, remains the greatest risk.

It’s interesting to speculate about how we’d view the rise of AI if we had a different view of intelligence. Plato believed that philosophers would need to be cajoled into becoming kings, since they naturally prefer contemplation to mastery over men. Other traditions, especially those from the East, see the intelligent person as one who scorns the trappings of power as mere vanity, and who removes him or herself from the trivialities and tribulations of quotidian affairs.

Imagine if such views were widespread: if we all thought that the most intelligent people were not those who claimed the right to rule, but those who went to meditate in remote places, to free themselves of worldly desires; or if the cleverest of all were those who returned to spread peace and enlightenment. Would we still fear robots smarter than ourselves?

Preconceito, autoridade e razão

Miguel Morgado, Autoridade (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010), 77–78:

Em sentido literal, isento de cargas pejorativas, o preconceito é tão-somente «o julgamento que se faz antes de se ter examinado todos os elementos que determinam uma situação». Assim, um preconceito não é necessariamente um julgamento errado. Não faltará, porém, quem diga que obedecer à autoridade é confessar a indisponibilidade ou a incapacidade para superar as alegadas carências do preconceito. Grande parte do pensamento do século XVIII europeu, a que se convencionou chamar das «Luzes», não protestou outra coisa. Há preconceitos cuja relevância e valor se podem dever às limitações naturais da condição humana. Contudo, outros preconceitos há que perduram graças exclusivamente à autoridade, que aqui funcionam como uma espécie de assistência respiratória de julgamentos duvidosos. Neste caso, preconceito e autoridade aliam-se para perpetuar a servidão humana, ou pelo menos de certos estratos da humanidade, aqueles que se sujeitam à autoridade e adoptam o preconceito. É também deste modo que os adversários da autoridade denunciam sub-repticiamente a associação entre autoridade e a negação da razão, ou aplaudem a alegada inimizade entre a autoridade e a razão. Recusam-se a aceitar que a compreensão humana do mundo decorre também dos julgamentos que temos de pronunciar em variadíssimas ocasiões da nossa vida, que a razão não opera num vazio histórico, que a aceitação da autoridade é uma prática incontornável e, em circunstâncias felizes e oportunas, proporcionadora de um recto exercício das faculdades do entendimento, justificada por a autoridade, enquanto autoridade, e na medida em que é autoridade, ser igualmente fonte de verdade. Recusam-se a aceitar que a relação entre a autoridade e a razão não é a de um simples confronto, apesar de lhes ser mostrado que o reconhecimento da autoridade sugere desde logo que não se prescindiu da razão. Esse reconhecimento traz implícito o raciocínio segundo o qual vale a pena aceitar o julgamento da autoridade porque esta pronuncia julgamentos superiores aos meus. Daí que seja enganador dizer que a autoridade é imposta por alguém sobre outrem. Na realidade, se a autoridade tem de ser reconhecida e aceite, o termo «imposição» torna-se deslocado. Ademais, a obediência à autoridade, que se segue ao seu reconhecimento, continua a comprovar que estamos diante de um acto regulado pela razão, já que a superioridade dos ditames da autoridade sobre os nossos julgamentos pode, em princípio, ser sempre demonstrada racionalmente.

Da domesticidade

G. K. Chesterton, Disparates do Mundo (Lisboa: Aletheia Editores, 2005), 57:

Para um homem simples, um homem que trabalha, a sua casa não é o único local sossegado num mundo cheio de aventuras; é o único local criativo num mundo cheio de regras e tarefas fixas. A sua casa é o único local onde ele pode aplicar a carpete no tecto e as telhas no chão, se lhe apetecer. Quando um homem passa as noites a cambalear de bar em bar ou de music-hall em music-hall, dizemos que leva uma vida irregular. Mas é falso: esse homem leva uma vida extremamente regular, subordinada às regras monótonas – e frequentemente opressivas – que vigoram nesses locais. Acontece por vezes que nem o autorizam a sentar-se nos bares; e a maior parte das vezes não o deixam cantar nos music-halls. Um hotel pode ser definido como um local onde a pessoa é obrigada a vestir-se; e um teatro como um sítio onde um homem está proibido de fumar. Só em casa é que um homem pode fazer piqueniques.

Liberais e conservadores precisam uns dos outros

George H. Nash, “Populism, I: American conservatism and the problem of populism”:

In the late 1950s and early 1960s the three independent wings of the conservative revolt against the Left began to coalesce around National Review, founded by William F. Buckley Jr. in 1955. Apart from his extraordinary talents as a writer, debater, and public intellectual, Buckley personified each impulse in the developing coalition. He was at once a traditional Christian, a defender of the free market, and a staunch anticommunist (a source of his ecumenical appeal to conservatives).

As this consolidation began to occur, a serious challenge arose to the fragile conservative identity: a growing and permanent tension between the libertarians and the traditionalists. To the libertarians the highest good in society was individual liberty, the emancipation of the autonomous self from external (especially governmental) restraint. To the traditionalists (who tended to be more religiously oriented than most libertarians) the highest social good was not unqualified freedom but ordered freedom grounded in community and resting on the cultivation of virtue in the individual soul. Such cultivation, argued the traditionalists, did not arise spontaneously. It needed the reinforcement of mediating institutions (such as schools, churches, and synagogues) and at times of the government itself. To put it another way, libertarians tended to believe in the beneficence of an uncoerced social order, both in markets and morals. The traditionalists often agreed, more or less, about the market order (as opposed to statism), but they were far less sanguine about an unregulated moral order.

Not surprisingly, this conflict of visions generated a tremendous controversy on the American Right in the early 1960s, as conservative intellectuals attempted to sort out their first principles. The argument became known as the freedom-versus-virtue debate. It fell to a former Communist and chief ideologist at National Review, a man named Frank Meyer, to formulate a middle way that became known as fusionism—that is, a fusing or merging of the competing paradigms of the libertarians and the traditionalists. In brief, Meyer argued that the overriding purpose of government was to protect and promote individual liberty, but that the supreme purpose of the free individual should be to pursue a life of virtue, unfettered by and unaided by the State.

As a purely theoretical construct, Meyer’s fusionism did not convince all his critics, then or later. But as a formula for political action and as an insight into the actual character of American conservatism, his project was a considerable success. He taught libertarian and traditionalist purists that they needed one another and that American conservatism must not become doctrinaire. To be relevant and influential, it must stand neither for dogmatic antistatism at one extreme nor for moral authoritarianism at the other, but for a society in which people are simultaneously free to choose and desirous of choosing the path of virtue.

(…).

What do conservatives want? To put it in elementary terms, I believe they want what nearly all conservatives since 1945 have wanted: they want to be free; they want to live virtuous and meaningful lives; and they want to be secure from threats both beyond and within our borders. They want to live in a society whose government respects and encourages these aspirations while otherwise leaving people alone. Freedom, virtue, and safety: goals reflected in the libertarian, traditionalist, and national security dimensions of the conservative movement as it has developed over the past seventy years. In other words, there is at least a little fusionism in nearly all of us. It is something to build on. But it will take time.

A tradição em John Kekes

John Kekes, A Case for Conservatism (Ithaca: Cornell University Press, 2001), 38-40 (tradução minha):

Uma tradição é um conjunto de crenças costumárias, práticas e acções que resistiu desde o passado até ao presente e atraiu a fidelidade de pessoas que desejam perpetuá-la. Uma tradição pode ser reflectiva e desenhada, como as deliberações do Supremo Tribunal, ou irreflectida e espontânea, como os fãs de desporto a apoiarem as suas equipas; pode ter um quadro institucional formal, como a Igreja Católica, ou pode não ser estruturada, como o alpinismo; pode ser competitiva, como os Jogos Olímpicos; em grande parte passiva, como ir à ópera; humanitária, como a Cruz Vermelha; egocêntrica, como o jogging; honorífica, como o Prémio Nobel; ou punitiva, como os procedimentos criminais. As tradições podem ser religiosas, horticulturais, científicas, atléticas, políticas, estilísticas, morais, estéticas, comerciais, médicas, legais, militares, educacionais, arquitecturais, e aí por diante. Elas permeiam as vidas humanas.

Quando os indivíduos formam gradual e experimentalmente a sua concepção de uma vida boa o que estão a fazer, em larga medida, é decidir em que tradições devem participar. Esta decisão pode ser tomada de dentro das tradições em que nasceram ou em que foram criados, ou de fora das tradições que os atraem, repelem, aborrecem ou interessam. As decisões podem ser conscientes, deliberadas, claramente afirmativas ou negativas, podem ser formas de seguir inconsciente e irreflectidamente padrões familiares, ou podem ser vários pontos entre estes tipos. O essencial das actividades dos indivíduos que dizem respeito a viver de formas que eles consideram boas é composto pela participação nas várias tradições da sua sociedade.

À medida que os indivíduos participam nestas actividades, claro que exercem a sua autonomia. Eles fazem escolhas e julgamentos; as suas vontades são envolvidas; eles aprendem com o passado e planeiam para o futuro. Mas fazem-no no quadro de várias tradições que com autoridade lhes providenciam as escolhas relevantes, as matérias que são deixadas aos seus julgamentos e os padrões que dentro de uma tradição determinam quais escolhas e julgamentos são bons e maus, razoáveis e ou irrazoáveis. O seu exercício da autonomia é o aspecto individual da sua conformidade à autoridade da sua tradição, que é o aspecto social do que eles estão a fazer. Eles agem autonomamente ao seguirem os padrões de autoridade das tradições a que sentem fidelidade.

(…). Entender o que se passa em termos de autonomia individual é tão unilateral quanto fazê-lo em termos de autoridade social. Cada uma desempenha um papel essencial, e entender o que se passa requer entender ambos os papéis que desempenham e o que os torna essenciais.

O tradicionalismo repousa sobre este entendimento, e é uma resposta política ao mesmo. A resposta é ter e manter arranjos políticos que promovem a participação dos indivíduos nas várias tradições que resistiram historicamente na sua sociedade. A razão para as promover é que as vidas boas dependem da participação numa variedade de tradições.

As tradições não se mantêm independentes umas das outras. Elas sobrepõem-se, formam partes umas das outras, e os problemas e questões que ocorrem numa são frequentemente resolvidos nos termos de outra. A maioria das tradições tem aspectos legais, morais, políticos, estéticos, estilísticos, administrativos, entre outros. Ademais, as pessoas que participam numa tradição trazem consigo as crenças, valores e práticas de muitas das outras tradições em que também participam. Desta forma, as mudanças numa tradição são propensas a produzir mudanças noutras. As tradições estão, assim, organicamente ligadas. É por isto que as mudanças numa tradição são como ondas que se reflectem noutras tradições de uma sociedade.

Algumas destas mudanças são para melhor, outras para pior. A maioria delas, todavia, é complexa, tem consequências que se tornam menos previsíveis quanto mais distantes estiverem, e que assim tendem a escapar ao controlo humano. Dado que estas mudanças são mudanças em tradições sobre as quais dependem as vidas boas, a atitude dos conservadores tradicionalistas em relação a elas será de extremo cuidado. Eles pretenderão controlar as mudanças na medida do possível. Eles quererão que elas não sejam mais amplas do que o necessário para remediar um defeito específico. Eles opor-se-ão a mudanças grandes, experimentais ou gerais devido aos seus efeitos incertos nas vidas boas.

As mudanças são, claro, frequentemente necessárias porque as tradições podem ser perversas, destrutivas, embrutecedoras, negativas e, assim, não conducentes a vidas boas. É parte do propósito dos arranjos políticos prevalecentes distinguir entre tradições que são inaceitáveis, tradições suspeitas mas toleráveis e tradições dignas de encorajamento – por exemplo, a escravatura, a pornografia e a educação universitária. As tradições que violam os requisitos mínimos da natureza humana são proibidas. As tradições que historicamente fizeram contribuições questionáveis para as vidas boas podem ser toleradas, mas não encorajadas. As tradições cujo registo histórico atesta a sua importância para as vidas boas são acarinhadas.

Do dogmatismo da ideologia de género

Camille Paglia, “Liberdade vs. politicamente correcto,” Ler, no. 144 (Inverno de 2016): 67:

Mantenho, de acordo com a minha desalentada observação na época, que esses novos programas suplementares raramente, ou mesmo nunca, se alicerçavam em princípios académicos autênticos: eram gestos de relações públicas destinados a abafar críticas de um passado intolerante. Na concepção de qualquer programa de estudos femininos, por exemplo, devia ser obrigatório para as alunas fazerem pelo menos uma cadeira de biologia básica, para que o papel das hormonas no desenvolvimento humano pudesse ser investigado – e rejeitado, se necessário. Mas não, tanto os estudos femininos como, mais tarde, os estudos de género evoluíram sem referência à ciência, garantindo desse modo que a sua ideologia permaneceria partidária e unidimensional, a sublinhar a construção social do género. Qualquer ponto de vista diferente é considerado uma heresia e praticamente nunca foi sequer apresentado aos estudantes como hipótese alternativa.