Com o spin em alta rotação a presentear-nos com leituras e interpretações dos resultados eleitorais para todos os gostos, observo que continuamos a ser uma democracia deficitária, com cidadãos menorizados a serem exclusivamente chamados a ratificar o que os directórios partidários decidem à porta fechada. Assim se explica que muitos dos eleitos do PS e do PSD sejam ilustres desconhecidos e/ou meros caciques e que as respectivas listas tenham sido encabeçadas por péssimos candidatos – por mais que os seus correligionários nos queiram convencer do contrário. Com a honrosa excepção do Livre – não obstante o resultado das suas eleições primárias ter desagradado a direcção -, o recrutamento político continua a fazer-se em circuito fechado, e para os partidos do centrão as eleições europeias servem para pouco mais do que promover alguns boys and girls e/ou incómodos reais ou potenciais para o chefe. Infelizmente, os nossos políticos de vistas curtas não sabem fazer melhor. Por último, destaco a descida do Chega e a vitória da Iniciativa Liberal, o único partido que cresceu quer em termos absolutos quer em percentagem e, portanto, o único, para além do PS, que se pode afirmar como vencedor nestas eleições.
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Na hora da demissão de António Costa
Naturalmente, estamos agora focados na árvore e a pensar no que se seguirá, ou seja, se o Presidente da República, que convocou os partidos e o Conselho de Estado para os próximos dias, dará espaço a uma solução interna da maioria parlamentar do PS (com que legitimidade?), ou, o que é mais provável, dissolverá a Assembleia da República – isto numa altura de discussão do Orçamento do Estado para o próximo ano. O país político estará hoje especialmente agitado, num corrupio de telefonemas e especulação sobre cenários eleitorais, e muito provavelmente passará os próximos meses a fazer listas de candidatos a deputados à porta fechada – que os cidadãos são meramente chamados a ratificar nas urnas – e a preparar e conduzir a campanha eleitoral, onde mais uma vez o foco será nas lideranças políticas, como é timbre da personalização do poder político.
Mas talvez valha a pena olhar para a floresta. Nos últimos 23 anos, o PS foi governo durante 16. Dos seus 3 Primeiros-Ministros neste período, um saiu perante o “pântano político”, outro continua numa rocambolesca relação com a Justiça e é com esta que o terceiro inicia agora uma relação cujos contornos ainda desconhecemos. A isto acrescem ainda dezenas de casos de Ministros, Secretários de Estado, adjuntos, assessores e autarcas envolvidos em diversas suspeitas de corrupção e afins. Por mais “códigos de ética e conduta” e “estratégias nacionais de combate à corrupção” que sejam formulados, é inegável que Portugal tem um problema estrutural de corrupção e descrédito das instituições políticas, o que alimenta os populismos quer à esquerda quer à direita.
Na sua classificação das formas de governo Montesquieu explica que, quanto à sua natureza, existem três: a monarquia, a república (que pode ser mais aristocrática ou mais democrática) e o despotismo. Quanto ao princípio que anima cada forma, entendendo por tal o propósito que anima o povo, o que o faz actuar, considera que a república se fundamenta na virtude (amor à pátria e dedicação à causa pública), a monarquia na honra (baseada nos privilégios e distinções) e o despotismo no medo. O autor da fórmula final da separação de poderes admirava as repúblicas, mas considerava que a virtude cívica requer um elevado padrão moral, um espírito público por parte dos cidadãos que os motive a subordinar os interesses privados ao público.
Acontece que, como salienta Chandran Kukathas a respeito da teoria política de David Hume, “Não podemos depender da benevolência ou virtude dos actores políticos se queremos que a liberdade e a segurança das possessões sejam asseguradas”, pelo que “a única solução é ter uma constituição forte cujas regras gerais mantenham os grupos de interesse e indivíduos ambiciosos em xeque. São as regras e não os indivíduos que governam que asseguram a segurança e a liberdade da sociedade.”
No fundo, ecoa Cícero e Santo Agostinho, a propósito de quem Alan Ryan afirma que “[Cícero faz] da justiça a característica definidora de uma república que é realmente uma república, e antecipa a famosa observação de Santo Agostinho de que sem justiça um estado é simplesmente um grande gangue de ladrões: um estado corrupto não é uma comunidade. Não pode haver res publica se as instituições do governo são pervertidas para servir interesses privados. (…). Boas instituições protegem o interesse comum contra a erosão por interesses privados e evitam que os conflitos de interesses privados se tornem destrutivos.”
Enquanto comunidade politicamente organizada, temos evidentes problemas éticos, que não raro desaguam em problemas legais. Estes são particularmente notórios no PS porque a sua permanência durante longos períodos no poder acaba por potenciar vícios que conduzem à captura do Estado por determinados interesses privados e à erosão do interesse público. A forma de reduzir a elevada exigência moral colocada pela virtude cívica e levar a uma revalorização da causa pública é através do desenho institucional. Como também ensina Montesquieu, “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele” indo até onde encontra limites.
Por outras palavras, precisamos urgentemente de reformar o sistema político nas suas diversas componentes. Sobre isto, teci algumas considerações já há quatro anos no Observador. Talvez esta seja uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o que precisamos de fazer para melhorar a qualidade da nossa democracia liberal antes que ela se degrade ainda mais.
Sobre a noite eleitoral
O PS esvaziou os partidos de esquerda (BE e CDU), porventura penalizados pelo chumbo do orçamento conducente a uma crise política em plena crise pandémica e económica, e os novos partidos de direita erodiram a direita histórica. Uma direita com um partido (PSD) tomado por um proto-autoritário que pretende controlar a justiça e a comunicação social e navega ao sabor do vento no que diz respeito a coligações com a extrema-direita, e outro (CDS) a morrer nas mãos de um adolescente tardio que julga liderar uma associação de estudantes e se insurge contra espantalhos como o marxismo cultural e a direita fofinha dos salões do Príncipe Real. Ambos abriram espaço para o crescimento de um partido racista e xenófobo (CH) e de outro (IL) alicerçado num libertarianismo yuppie. Temos assim uma direita ideologicamente mais vincada e purista, organizacionalmente escaqueirada e orfã de quem a federe. Perante lideranças incapazes e um crescente radicalismo ideológico à direita, e um comportamento irresponsável à esquerda do PS, sendo as eleições ganhas ao centro, é natural que os eleitores que oscilam entre PS e PSD tenham decidido reforçar o PS. Isto significa um certo conservadorismo em relação à preservação do regime democrático, do Estado Social, do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública. Ou seja, aquilo que foram conquistas do liberalismo, do conservadorismo, da democracia cristã e da social-democracia no pós-II Guerra Mundial. Quando perceber isto e se deixar de aventureirismos, talvez a direita consiga voltar a ganhar eleições.
Programa para hoje
Jota a Jota: Especial Chega
A convite de Luis Francisco Sousa, estive à conversa com Riccardo Marchi sobre o Chega e André Ventura para o podcast Jota a Jota. Podem ouvir no formato podcast ou assistir ao vídeo que aqui fica.
Bem-vindos ao teatro do absurdo
O meu balanço das eleições presidenciais, no Sapo 24:
Salvou-se o bom discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, uma espécie de Presidente-Rei do Portugal contemporâneo, numa noite que representa, por diversas razões, um novo capítulo da história democrática. O regime precisa de se modernizar para promover uma maior participação eleitoral e aprofundar a representatividade e tem forçosamente de responder aos problemas económicos e sociais que enfrentamos para evitar a fragmentação social e a polarização política em que o populismo medra. Marcelo demonstrou ter consciência disto mesmo, mas encontra-se perante uma conjuntura de difícil gestão. Tanto a esquerda como a direita democráticas têm de se regenerar e reconfigurar para procurarem reconquistar aqueles que se sentem injustiçados e ignorados pelo sistema. A contagem decrescente já começou.
Isto está tudo ligado
Hoje escrevo no Observador sobre como a reforma do sistema eleitoral (que, mais uma vez, foi adiada para as calendas gregas), o centralismo, a regionalização, a valorização do interior, o regresso de emigrantes e o crescimento económico são questões intrinsecamente ligadas. Infelizmente, estamos reféns de partidos políticos que, parafraseando Lampedusa, andam há décadas a mudar alguma coisa para que fique tudo como está. Por isso, termino este artigo assim:
Dir-me-ão que estou a ser demasiado ambicioso e até irrealista com estas propostas, quando, afinal, eu próprio aventei acima que dificilmente os principais partidos abdicarão do statu quo, ao que acresce termos uma sociedade civil anémica com pouca capacidade de pressionar o sistema político. Mas tudo isto serve também outro propósito: evidenciar a distância entre o discurso e a acção dos partidos políticos nos temas a que aludi e a nossa incapacidade, enquanto sociedade civil, para fiscalizarmos e responsabilizarmos o poder político e o pressionarmos no sentido de se proceder a reformas realmente estruturais que aproveitem mais eficientemente os recursos naturais, humanos e financeiros do país. Como escreveu Miguel Torga, “Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.” Os partidos políticos agradecem.
Rescaldo da noite de eleições europeias
Lá fora, ainda não foi desta que a onda populista se tornou tsunami.
Cá dentro, à esquerda, se um partido no governo, com um péssimo cabeça de lista, consegue este resultado, imagine-se o que não conseguirá nas legislativas se as circunstâncias sociais e políticas se mantiverem estáveis; à direita, se esta não for capaz de se entender, de gerar um projecto inovador e agregador, de concorrer a eleições em coligações amplas, dificilmente voltará a ser governo nos próximos anos – e não será com as lideranças de Rio e Cristas, ambos sem ideias para o país e com o carisma de uma couve de Bruxelas, e ignorando ou descurando o potencial da Aliança e da Iniciativa Liberal, que conseguirá conquistar o poder.
A grande vencedora, porém, continua a ser a abstenção, que, como é habitual, foi vilipendiada durante toda a noite por vários políticos e políticos-comentadores. A este respeito, e em modo telegráfico, saliento apenas que os sistemas partidário e eleitoral portugueses são bastante elitistas, fechados, pouco representativos da sociedade portuguesa e avessos à participação política. Podemos sempre colocá-los em perspectiva histórica e levar em consideração as condicionantes com que se defrontou uma recente e frágil democracia nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas passados 45 anos, temos partidos-cartel que dificultam a entrada de novos partidos no jogo democrático, não há a possibibilidade de candidaturas independentes à Assembleia da República, o mandato livre dos deputados é, na verdade, um mandato imperativo pertencente aos partidos que impõem uma profundamente anti-democrática disciplina de voto, não há eleições primárias nos partidos, não temos voto preferencial, não temos círculos uninominais e a tão propalada reforma do sistema eleitoral é mero ornamento de programas eleitorais de partidos que, obviamente, nunca irão abdicar voluntariamente de um sistema que lhes dá o poder que detêm e lhes permite continuarem a desdenhar a sociedade civil. A representação é cada vez mais ténue e a participação política para a generalidade da população, porque os partidos assim o querem, limita-se ao voto em listas previamente feitas pelas máquinas partidárias, ou seja, a uma mera ratificação do que os partidos decidem à porta fechada. É claro que há pessoas que têm pouco ou nenhum interesse pela política, mas colocar inteiramente o ónus da abstenção na generalidade dos portugueses, demitindo-se os partidos de quaisquer responsabilidades pelo actual estado de coisas, é, no mínimo, incorrecto e injusto. Por tudo isto, de cada vez que oiço da boca de políticos, em noites eleitorais, a ladainha da abstenção e do desinteresse dos portugueses pela política, apetece-me logo puxar da pistola. Isto é assim e continuará a ser assim porque os partidos querem que assim seja.
Do sistema político português
José Adelino Maltez, Metodologias da Ciência Política: Relatório das provas de agregação apresentado no Outono de 1996, Lisboa, ISCSP-UTL, 2007, p. 223:
“E eis que o processo de luta entre os grupos se transforma de luta aberta em luta oculta, no qual, na nebulosa e nas brumas, conspiram, já não sociedades secretas e sociedades discretas, mas, sobretudo, grupos de amigos e muitas outras minorias militantes e feudalizantes ao serviço de programas gnósticos, por onde circulam inúmeros idiotas úteis que executam sem saberem de programação.
“Os apoios e as reivindicações, assim instrumentalizados, tendem a favorecer um crescente indiferentismo, o qual é o principal input dos actuais sistemas políticos que não sabem manter relações de troca com os outros subsistemas sociais. Tudo se joga no tabuleiro de um esotérico, onde comunistas, ex-comunistas, maçónicos e antimaçónicos, anticomunistas e anti-ex-comunistas brincam ao jogo dos iniciados, sem estabelecerem comunicação com quem é cada vez mais abstencionista, mesmo que se procure inverter a disfunção com o recurso aos populismos e às vozes tribunícias.
“É por tudo isto que Portugal se dessangra em autonomia, em identidade e em consciência. Colonizado por forças exteriores e empobrecido por forças internas, tende para uma mediocracia. A classe política caminha para um rebaixamento de fins porque o nível dos apoios e das reivindicações tende a expressar-se, de modo dominante, por minorias militantes, essas que circulam no conúbio entre a classe política e a classe mediocrática. Surge, assim, um crescente volume de indiferença abstencionista como principal forma de entrada no sistema político, o qual tende apenas a produzir decisões para quem o provoca, correndo o risco de se desenraizar do ambiente, de entrar em disfunção, mesmo que, internamente, funcione de forma correcta.”
Um estudo empírico que contraria vários argumentos favoráveis ao populismo
Yascha Mounk e Jordan Kyle decidiram realizar um estudo com base em dados empíricos e confrontar argumentos a respeito do populismo, tendo escrito este excelente artigo que reforça aquilo que muitos, entre os quais este vosso humilde escriba, têm vindo a defender, que o populismo, de esquerda ou de direita, é uma ameaça às democracias liberais, não um correctivo. Aqui fica a conclusão:
Since populists often thrive on anger about all-too-real shortcomings—elites who really are too remote, political systems that really are shockingly corrupt—it is tempting to hope that they can help rejuvenate imperfect democracies around the world. Alas, the best evidence available suggests that, so far at least, they have done the opposite. On average, populist governments have deepened corruption, eroded individual rights, and inflicted serious damage on democratic institutions.
Programa para hoje
Do excepcionalismo americano
David Frum, “The Souring of American Exceptionalism”:
America’s uniqueness, even pre-Trump, was expressed as much through negative indicators as positive. It is more violent than other comparable societies, both one-on-one and in the gun massacres to which the country has become so habituated. It has worse health outcomes than comparably wealthy countries, and some of the most important of them are deteriorating further even as they improve almost everywhere else. America’s average levels of academic achievement lag those of other advanced countries. Fewer Americans vote—and in no other democracy does organized money count for so much in political life. A century ago, H.L. Mencken observed the American “national genius for corruption,” and (again pre-Trump) Transparency International’s corruption perceptions index ranks the U.S. in 18th place, behind Hong Kong, Belgium, Australia, Canada, the Netherlands, the United Kingdom, Germany—never mind first-place finishers Denmark and New Zealand.
As I said: pre-Trump. Now the United States has elected a president who seems much more aligned with—and comfortable in the company of—the rulers of Turkey, Hungary, Uzbekistan, and the Philippines than his counterparts in other highly developed countries.
That result forces a reshaping of the question of American exceptionalism.
“Why was the United States vulnerable to such a person when other democracies have done so much better?” Part of the answer is a technical one: The Electoral College, designed to protect the country from demagogues, instead elected one. But then we have to ask: How did Trump even get so far that the Electoral College entered into the matter one way or another?
Thinking about that question forces an encounter with American exceptionalism in its most somber form. If, as I believe, Donald Trump arose because of the disregard of the American political and economic elite for the troubles of so many of their fellow-citizens, it has to be asked again: How could the leaders of a democratic country imagine they could get away with such disregard?
Political Science and the 2017 UK General Election
Até ao fim de Julho podem aceder livremente a esta colecção de artigos subordinados à temática ‘Political Science and the 2017 UK General Election’. Destaco “Political Opposition and the European Union” de Peter Mair e “The Populist Zeitgeist” de Cas Mudde.