Preconceito, autoridade e razão

Miguel Morgado, Autoridade (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010), 77–78:

Em sentido literal, isento de cargas pejorativas, o preconceito é tão-somente «o julgamento que se faz antes de se ter examinado todos os elementos que determinam uma situação». Assim, um preconceito não é necessariamente um julgamento errado. Não faltará, porém, quem diga que obedecer à autoridade é confessar a indisponibilidade ou a incapacidade para superar as alegadas carências do preconceito. Grande parte do pensamento do século XVIII europeu, a que se convencionou chamar das «Luzes», não protestou outra coisa. Há preconceitos cuja relevância e valor se podem dever às limitações naturais da condição humana. Contudo, outros preconceitos há que perduram graças exclusivamente à autoridade, que aqui funcionam como uma espécie de assistência respiratória de julgamentos duvidosos. Neste caso, preconceito e autoridade aliam-se para perpetuar a servidão humana, ou pelo menos de certos estratos da humanidade, aqueles que se sujeitam à autoridade e adoptam o preconceito. É também deste modo que os adversários da autoridade denunciam sub-repticiamente a associação entre autoridade e a negação da razão, ou aplaudem a alegada inimizade entre a autoridade e a razão. Recusam-se a aceitar que a compreensão humana do mundo decorre também dos julgamentos que temos de pronunciar em variadíssimas ocasiões da nossa vida, que a razão não opera num vazio histórico, que a aceitação da autoridade é uma prática incontornável e, em circunstâncias felizes e oportunas, proporcionadora de um recto exercício das faculdades do entendimento, justificada por a autoridade, enquanto autoridade, e na medida em que é autoridade, ser igualmente fonte de verdade. Recusam-se a aceitar que a relação entre a autoridade e a razão não é a de um simples confronto, apesar de lhes ser mostrado que o reconhecimento da autoridade sugere desde logo que não se prescindiu da razão. Esse reconhecimento traz implícito o raciocínio segundo o qual vale a pena aceitar o julgamento da autoridade porque esta pronuncia julgamentos superiores aos meus. Daí que seja enganador dizer que a autoridade é imposta por alguém sobre outrem. Na realidade, se a autoridade tem de ser reconhecida e aceite, o termo «imposição» torna-se deslocado. Ademais, a obediência à autoridade, que se segue ao seu reconhecimento, continua a comprovar que estamos diante de um acto regulado pela razão, já que a superioridade dos ditames da autoridade sobre os nossos julgamentos pode, em princípio, ser sempre demonstrada racionalmente.