Com o spin em alta rotação a presentear-nos com leituras e interpretações dos resultados eleitorais para todos os gostos, observo que continuamos a ser uma democracia deficitária, com cidadãos menorizados a serem exclusivamente chamados a ratificar o que os directórios partidários decidem à porta fechada. Assim se explica que muitos dos eleitos do PS e do PSD sejam ilustres desconhecidos e/ou meros caciques e que as respectivas listas tenham sido encabeçadas por péssimos candidatos – por mais que os seus correligionários nos queiram convencer do contrário. Com a honrosa excepção do Livre – não obstante o resultado das suas eleições primárias ter desagradado a direcção -, o recrutamento político continua a fazer-se em circuito fechado, e para os partidos do centrão as eleições europeias servem para pouco mais do que promover alguns boys and girls e/ou incómodos reais ou potenciais para o chefe. Infelizmente, os nossos políticos de vistas curtas não sabem fazer melhor. Por último, destaco a descida do Chega e a vitória da Iniciativa Liberal, o único partido que cresceu quer em termos absolutos quer em percentagem e, portanto, o único, para além do PS, que se pode afirmar como vencedor nestas eleições.
Sic itur ad astra
Passam hoje 50 anos sobre o 25 de Abril e 1 ano sobre a morte do meu avô, Carlos Armando de Paiva Rodrigues.
Muito poderia escrever sobre a história da vida do meu avô, que desde muito cedo foi pautada por difíceis provações e árduas lições que fizeram dele um grande homem. Tudo o que conseguisse reduzir a escrito, porém, não só não faria justiça à sua magnanimidade e nobreza de carácter, como desonraria a sua maneira de ser caracterizada pela reserva e discrição.
Limito-me, assim, volvido um ano sobre a sua morte, a reflectir sobre a sua importância e influência na minha própria vida. Todos os defeitos que possuo são inteiramente meus, mas o melhor de mim vem do meu avô. Tal como Marco Aurélio, também eu “Aprendi com o meu avô o carácter e a rectidão” e tive, aliás, a honra e o privilégio de com ele aprender muito mais.
Foi o meu avô quem fomentou em mim, desde muito cedo, o gosto pela leitura e o interesse pela política. Foi ele quem me iniciou na reflexão filosófica à maneira de Aristóteles, de forma peripatética, nos nossos muitos passeios em que me ensinou praticando um método dialéctico e conversacional que fácil e rapidamente atravessava vários assuntos, obrigando-me a pensar afincadamente para poder avançar como seu discípulo. Com o meu avô aprendi a distinguir os homens bons dos maus e compreendi que ser bom é ser justo, tendo o meu sentido de justiça sido gerado directamente pelo dele. Ao vê-lo lutar contra as injustiças que cometeram contra ele, compreendi as implicações práticas da afirmação de Albert Camus, em O Homem Revoltado, de que “É melhor morrer de pé do que viver de joelhos”. Devo o que sou hoje, também, à ética de trabalho de que ele sempre foi um exemplo ímpar.
Foram tantas as conversas que tivemos acerca dos mais diversos temas, que, para além de meu avô, foi o meu melhor amigo e o meu primeiro e principal mestre. Porque como também escreveu Marco Aurélio, “O aperfeiçoamento da leitura e da escrita requerem um mestre. A vida requere-o mais.” E o meu avô foi o melhor mestre que poderia ter tido.
Uma das suas mais importantes lições, transmitida ao longo de décadas, foi a respeito da morte. Ouvi-lhe frequentemente a expressão “Até amanhã, se a Providência deixar” e habituei-me a ouvi-lo ecoar a sabedoria dos clássicos gregos e romanos sobre esta questão. Praticou, no fundo, os ensinamentos de Montaigne em “Que filosofar é aprender a morrer”: “É incerto onde a morte nos espera; vamos esperá-la em todos os lugares. A premeditação da morte é a premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a ser escravo. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e constrangimento. Não há nada de mal na vida para o homem que compreendeu bem o facto de que ser privado da vida não é um mal.”
Ao longo dos anos, ouvi-o falar recorrentemente deste tema com a naturalidade e serenidade que apenas está reservada aos grandes homens. Grandeza esta que ficou patente na hora da partida, após várias semanas de uma luta estoica que foi a maior carta de amor que o meu avô me escreveu e à Ana, a quem generosa e carinhosamente tratava por neta. Quatro dias após ter estado presente no nosso casamento, quis a Providência levá-lo na madrugada do dia 25 de Abril de 2023, em Santarém, precisamente a cidade de onde saiu a coluna de Salgueiro Maia pela qual o meu avô passou às primeiras horas da manhã do dia 25 de Abril de 1974, na Baixa de Lisboa.
Deixar-nos no Dia da Liberdade foi o último acto poético de um homem livre, bom e justo, que viveu como pensava, casando a honra com a inteligência e a justiça com a integridade, praticando o bem e evitando o mal.
Em todos os dias 25 de Abril, o meu avô saia à rua com o cravo na lapela. Hoje, por ele, pela democracia e pela liberdade, lá estarei a fazer o mesmo, na Avenida da Liberdade.
Do reaccionarismo da direita da “Identidade e Família”
Agora que a poeira assentou, aqui ficam algumas considerações acerca da polémica em torno da publicação do livro Identidade e Família:
1 – Comungando a totalidade dos autores do livro da doutrina católica, destacam-se alguns deles por o seu pensamento político ser classificado pelos próprios e por terceiros como “conservador”, casos de Paulo Otero, João César das Neves, Jaime Nogueira Pinto e Gonçalo Portocarrero de Almada.
2 – Sendo certo que existem duas grandes correntes do conservadorismo – teoria política cujo berço (e local onde foi mais desenvolvida) é a Grã-Bretanha -, uma com um substrato religioso e outra de teor secular, no nosso país, o conservadorismo tem revolvido, ao longo das últimas décadas, em torno da doutrina social da Igreja Católica, da democracia cristã e de temas como o saudosismo do Estado Novo, a crítica ao 25 de Abril de 1974 e a oposição ao liberalismo e ao socialismo nas suas várias declinações, que se reflecte, por exemplo, na oposição à interrupção voluntária da gravidez, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à co-adopção por estas e à eutanásia. Fundamentalmente, estamos em presença de um conservadorismo católico.
3 – É completamente estranho ao pensamento de vários conservadores portugueses o pensamento de autores como David Hume, Edmund Burke ou Michael Oakeshott. Sinteticamente, estes últimos dão voz a um conservadorismo que aceita a mudança contanto que seja resultante da evolução orgânica da sociedade, gradual e reformista, não revolucionária, total e ideologicamente guiada. Para esta corrente, que alguns classificam como sendo um conservadorismo liberal, a mudança deve ainda resultar de necessidades concretas e não de princípios abstractos alcançados por uma razão dedutiva e apriorística, i.e., pelo que Oakeshott, Popper ou Hayek classificaram como racionalismo dogmático ou construtivista. Por outras palavras, é uma teoria política herdeira das Revoluções Inglesa e Americana e crítica da Revolução Francesa, sendo ainda hoje o substrato ideológico do Partido Conservador do Reino Unido.
4 – Esta corrente, como explica Oakeshott, não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo”, que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador”.
5 – O pensamento plasmado nos artigos de alguns dos autores do mencionado livro, por seu lado, assenta em crenças religiosas e morais e visa restaurar uma determinada concepção de sociedade reminiscente do Estado Novo. Pretende repudiar regras de conduta gerais e abstractas desenvolvidas através da evolução cultural da sociedade portuguesa que têm a liberdade individual e a possibilidade de escolha no seu cerne e substituí-las por uma visão ancorada numa doutrina e crença religiosa que prescreve condutas específicas e substantivas e não é partilhada por todos os cidadãos. Tem como objectivo substituir uma perspectiva liberal e pluralista de sociedade, em que não existe uma verdade única e é deixada aos indivíduos a capacidade de prosseguirem diversas concepções de vida boa, por uma ortodoxia pública imposta pelo Estado alicerçada numa única definição do que constitui uma vida boa, reduzindo a esfera de liberdade de todos os cidadãos.
6 – A visão de sociedade patente em vários destes artigos implica, consequentemente, uma oposição a mudanças que ocorreram de forma evolucionista e gradual na sociedade portuguesa ao longo de 50 anos, tendo sido possibilitadas pelo 25 de Abril de 1974. Estamos perante um pensamento contra-revolucionário e providencialista – próximo de Joseph de Maistre e Louis de Bonald -, que se reflecte num conservadorismo autoritário que pode e deve ser definido numa única palavra: reaccionário.
7 – Este pensamento reaccionário critica o que classifica como “ideologia de género” partindo da premissa de que o que considera ser a “família natural” é a única concepção legítima de família, dela derivando o conteúdo normativo do que pretende impor autoritariamente a toda a sociedade, sendo todas as outras concepções consideradas desvios patológicos produzidos pela modernidade ou pelo pós-modernismo. Para além de não aceitarem mudanças produzidas pelo curso natural e gradual da evolução social, acreditam que a sua concepção de família é ideologicamente neutra, como se não fosse ela própria uma ideologia de género, uma visão ideológica dos papéis de género e da sexualidade. Talvez falte aos seus cultores capacidade para apreciar esta ironia.
8 – Para finalizar, perdoem-me a deselegância de citar um artigo da minha autoria, escrito a propósito do combate que muitas das figuras desta direita reacionária promoveram à disciplina de Educação para a Cidadania, que, infelizmente, retém actualidade:
Todavia, esta ideia não chega a ser surpreendente, porquanto boa parte da direita, naquilo que vê como um combate cultural gramsciano, acolhe uma inversão entre as matérias onde o primado da comunidade política se impõe e aquelas onde a esfera da liberdade individual deveria tomar preeminência. É uma marca característica desta direita, por um lado, recomendar a liberdade de escolha em áreas como a educação, a saúde e a segurança social com propostas de políticas públicas que serviriam essencialmente os interesses das classes sociais privilegiadas à custa do bem comum, e, por outro, defender a imposição a todos os cidadãos, pela coerção estatal, de uma visão do mundo alicerçada em larga medida na religião católica em matérias eminentemente do foro da liberdade individual e da esfera privada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a despenalização do aborto e a eutanásia.
Por outras palavras, nuns dias são liberais que acolhem a separação entre sociedade civil e Estado e clamam contra a intromissão deste e da ideologia em domínios em que, por definição, o aparelho político tem de tomar opções políticas e ideológicas, e noutros prosseguem a herança do absolutismo para defender a imposição de uma perspectiva ideológica em matérias em que o Estado se deveria limitar a respeitar o foro privado e a liberdade individual.
Eternamente arrendatários
No programa de governo hoje apresentado anuncia-se a intenção de eliminar o IMT e garantir financiamento a 100% do crédito à habitação para os jovens até aos 35 anos.
Tenho 37 anos, um vínculo laboral precário, e pago, em conjunto com a minha mulher, uma renda de quase 1500 euros num concelho limítrofe de Lisboa, cidade onde trabalhamos. Não beneficiamos de uma rede de suporte familiar em termos financeiros, atravessámos crises económicas sucessivas desde 2008 e temos tentado, na medida do possível, amealhar para adquirir habitação própria, o que se tem tornado verdadeiramente utópico num país com rendas exorbitantes (na região em que trabalhamos), condições de acesso ao crédito restritivas e (mais) um imposto absurdo, o IMT, que se constitui, em conjunto com a exigência de uma entrada de 10% do valor do casa, num enorme obstáculo, especialmente num contexto em que a especulação imobiliária vingou perante a inércia dos governos anteriores, tornando os preços da habitação incomportáveis para milhares de pessoas que se encontram em situação idêntica à nossa.
Impõe-se perguntar: por que raio seremos agora excluídos de uma medida que beneficia os que têm até 35 anos em vez de criar condições equitativas para todos aqueles que necessitam de adquirir uma primeira habitação neste contexto particularmente exigente e desafiante?
Que sentido faz introduzir esta distorção no mercado, privilegiando um segmento etário à custa de outros que estando há anos a lutar para ter uma primeira habitação própria se vêem agora completamente marginalizados pelo governo da AD?
Por que razão somos excluídos de uma medida essencial para as nossas vidas por um critério totalmente arbitrário assente exclusivamente na idade?
Daqui se deduz que, para a AD, todos os que têm mais de 35 anos e se vêem na contingência de pagar rendas exorbitantes e não conseguir adquirir habitação própria servem essencialmente para pagar impostos. Que miséria de país.
50 Anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas
No ano em que se celebra o 50 aniversário do 25 de Abril de 1974, o Centro de Administração e Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas decidiu desenvolver um projecto de investigação “com o objetivo de mapear e descrever, a partir de um nível individual, como os portugueses percebem e compreendem as principais características da democracia”.
A equipa responsável é liderada pelos Professores Pedro Fonseca (coordenação geral), Conceição Pequito (coordenação científica) e Manuel Meirinho (coordenação institucional).
São parceiros deste projecto a Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril e o jornal Público.
Da sobrevalorização da comunicação na era do vazio
A sobrevalorização da forma sobre a matéria, do método sobre a teoria, da comunicação sobre a substância, é sintomática de sociedades permeadas pela superficialidade e efemeridade associadas à modernidade líquida. Nesta, com a relevância assumida pela “empresa” e pelo “mercado” em resultado da globalização económica a manifestar-se na forma como a governação política é encarada e exercida, o poder político vê-se na contingência de poder mudar, frequentemente de modo autoritário, sem uma discussão alargada, características identitárias patentes nas formas comunicacionais, como se um Estado ou um Governo fossem uma qualquer empresa privada. Tratando-se de alterações cosméticas a que subjazem disputas estéticas e políticas, não existe, neste ambiente social e cultural, qualquer possibilidade de arbitrar tais contendas por referência a critérios racionais e comunitariamente partilhados, com as preferências a residirem somente em gostos individuais. O que é feito encontra justificação apenas na força, na vontade de quem temporariamente exerce o poder político. Quem vier a seguir pode sempre fazer como quem veio antes, voltando a mudar a identidade visual, que com tantas variações acaba por erodir o seu próprio significado e, consequentemente, a identificação da comunidade política com o Governo. Nesta matéria, os diferentes governos têm-se comportado como um novo conselho de administração que opera um “rebranding” para se distinguir do anterior. Que as elites governantes não se apercebam do processo de desinstitucionalização do poder político associado a tal comportamento, não é surpreendente. Mas nem assim tudo isto deixa de ser lamentável.
Na hora da demissão de António Costa
Naturalmente, estamos agora focados na árvore e a pensar no que se seguirá, ou seja, se o Presidente da República, que convocou os partidos e o Conselho de Estado para os próximos dias, dará espaço a uma solução interna da maioria parlamentar do PS (com que legitimidade?), ou, o que é mais provável, dissolverá a Assembleia da República – isto numa altura de discussão do Orçamento do Estado para o próximo ano. O país político estará hoje especialmente agitado, num corrupio de telefonemas e especulação sobre cenários eleitorais, e muito provavelmente passará os próximos meses a fazer listas de candidatos a deputados à porta fechada – que os cidadãos são meramente chamados a ratificar nas urnas – e a preparar e conduzir a campanha eleitoral, onde mais uma vez o foco será nas lideranças políticas, como é timbre da personalização do poder político.
Mas talvez valha a pena olhar para a floresta. Nos últimos 23 anos, o PS foi governo durante 16. Dos seus 3 Primeiros-Ministros neste período, um saiu perante o “pântano político”, outro continua numa rocambolesca relação com a Justiça e é com esta que o terceiro inicia agora uma relação cujos contornos ainda desconhecemos. A isto acrescem ainda dezenas de casos de Ministros, Secretários de Estado, adjuntos, assessores e autarcas envolvidos em diversas suspeitas de corrupção e afins. Por mais “códigos de ética e conduta” e “estratégias nacionais de combate à corrupção” que sejam formulados, é inegável que Portugal tem um problema estrutural de corrupção e descrédito das instituições políticas, o que alimenta os populismos quer à esquerda quer à direita.
Na sua classificação das formas de governo Montesquieu explica que, quanto à sua natureza, existem três: a monarquia, a república (que pode ser mais aristocrática ou mais democrática) e o despotismo. Quanto ao princípio que anima cada forma, entendendo por tal o propósito que anima o povo, o que o faz actuar, considera que a república se fundamenta na virtude (amor à pátria e dedicação à causa pública), a monarquia na honra (baseada nos privilégios e distinções) e o despotismo no medo. O autor da fórmula final da separação de poderes admirava as repúblicas, mas considerava que a virtude cívica requer um elevado padrão moral, um espírito público por parte dos cidadãos que os motive a subordinar os interesses privados ao público.
Acontece que, como salienta Chandran Kukathas a respeito da teoria política de David Hume, “Não podemos depender da benevolência ou virtude dos actores políticos se queremos que a liberdade e a segurança das possessões sejam asseguradas”, pelo que “a única solução é ter uma constituição forte cujas regras gerais mantenham os grupos de interesse e indivíduos ambiciosos em xeque. São as regras e não os indivíduos que governam que asseguram a segurança e a liberdade da sociedade.”
No fundo, ecoa Cícero e Santo Agostinho, a propósito de quem Alan Ryan afirma que “[Cícero faz] da justiça a característica definidora de uma república que é realmente uma república, e antecipa a famosa observação de Santo Agostinho de que sem justiça um estado é simplesmente um grande gangue de ladrões: um estado corrupto não é uma comunidade. Não pode haver res publica se as instituições do governo são pervertidas para servir interesses privados. (…). Boas instituições protegem o interesse comum contra a erosão por interesses privados e evitam que os conflitos de interesses privados se tornem destrutivos.”
Enquanto comunidade politicamente organizada, temos evidentes problemas éticos, que não raro desaguam em problemas legais. Estes são particularmente notórios no PS porque a sua permanência durante longos períodos no poder acaba por potenciar vícios que conduzem à captura do Estado por determinados interesses privados e à erosão do interesse público. A forma de reduzir a elevada exigência moral colocada pela virtude cívica e levar a uma revalorização da causa pública é através do desenho institucional. Como também ensina Montesquieu, “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele” indo até onde encontra limites.
Por outras palavras, precisamos urgentemente de reformar o sistema político nas suas diversas componentes. Sobre isto, teci algumas considerações já há quatro anos no Observador. Talvez esta seja uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o que precisamos de fazer para melhorar a qualidade da nossa democracia liberal antes que ela se degrade ainda mais.
II Conferência ISCSP de Estudos Políticos, Estratégicos e Internacionais
Na próxima Quinta-feira, 18 de Maio, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa organiza a II Conferência ISCSP de Estudos Políticos, Estratégicos e Internacionais, desta feita subordinada à temática “Guerra e Paz no século XXI. Os desafios e o futuro da Ordem Liberal Internacional”. Além das intervenções de ilustres docentes e investigadores nacionais, contaremos com uma conferência de encerramento proferida pelo Professor G. John Ikenberry intitulada “Does the Liberal International Order have a Future?”.
A entrada no evento é gratuita, mas carece de inscrição obrigatória, disponível através deste link.
Conferência “A Função da Teoria em Relações Internacionais: Perspetivas e Debates”
Carlos Armando de Paiva Rodrigues (15 de Dezembro de 1926 – 25 de Abril de 2023)
O meu querido avô Carlinhos, marido e pai exemplar, avô, amigo e mestre sem par, deixou a existência para ascender à essência na madrugada do Dia da Liberdade, como último acto poético de um homem livre, bom e justo.
Viveu como pensava, casando a honra com a inteligência, a justiça com a integridade, praticando o bem e evitando o mal. Permanecerá eternamente nos nossos corações e memórias.
A sua mulher, filha e netos informam que o funeral se realizará amanhã, 27 de Abril, às 13:00, antecedido de velório, às 11:00, no Crematório de Santarém, sito na Rua Imaculada Conceição, 2000-072 Santarém.
“Sic itur ad astra” (Virgílio).
Brexit, the Rise of China, and the Future of the Liberal International Order and Great Power Competition
Acaba de ser publicado o meu mais recente artigo, que pode ser lido na íntegra aqui, cortesia da Society e da Springer. Aqui fica o abstract:
In the last decade, the European Union (EU), a bulwark of the liberal international order, has been subject to a high degree of turmoil resulting from various processes and crises and has witnessed the rise of national populism, of which Brexit was the main exponent. The leadership of the order was also impacted by the changes in the foreign policy of the United States of America (USA) effected by the Trump Administration. The USA, the United Kingdom (UK), and the EU are the leaders of the liberal zone of peace and if national populism structurally affects them the liberal international order could be seriously challenged. Among the various instances of national populism, Brexit remains a significant challenge to the EU and might greatly impact the liberal international order. By adopting an interpretivist methodology anchored in hermeneutics and in the methodological approach of emergent causation, this article seeks to understand how Brexit, as an internal challenge to the order, and the rise of China and other revisionist powers, as an external one, might influence the future of the liberal international order and great power competition. I argue that the news of the order’s death is greatly exaggerated, and that depending on British, German, and US variables, Brexit and the rise of China can either challenge or reinforce the liberal international order. Nevertheless, liberalism has a resilience no other political perspective has due to its innate ability for criticism and adaptation to change. Considering that the current liberal international order is a USA-led order, I argue that these are the two main variables concerning how Brexit might influence the liberal international order and how the order’s leading powers will adapt their strategies and foreign policies towards China and other revisionist powers.
O regresso do fim das ideologias
Hoje escrevo no Observador sobre como a guerra na Ucrânia nos coloca perante um retorno da tese do fim das ideologias. Aqui fica um excerto:
Nesta conjuntura internacional, parece-nos importante questionar se não estaremos também a assistir ao regresso da tese do fim das ideologias, desta feita com base na dicotomia entre democracias liberais e regimes autoritários. Esta já era uma característica da política internacional pós-Guerra Fria, mas a interdependência económica entre as democracias liberais e, principalmente, a Rússia e a China, levou o Ocidente a lidar com uma certa bonomia com as interferências e tentativas de subversão das suas sociedades abertas. Agora que as aparências caíram por terra, somos todos, nas democracias liberais, convocados para um confronto político e ideológico. Com raras excepções, as divergências entre a esquerda e a direita parecem dar lugar a uma coesão social que se revela no apoio à Ucrânia e na consciência de que estamos perante uma ameaça existencial ao modo de vida demoliberal. A política internacional volta a definir as convergências e cisões ideológicas. O século XXI começa agora.
Programa para hoje
Hoje, às 15.00, via Zoom (ID da reunião: 821 7916 5180; Senha de acesso: 228233),
Rússia vs. Ucrânia: Uma Análise Política, Estratégica e Internacional
Hoje, pelas 18:00, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa organiza um webinar sobre a situação na Ucrânia. Serão oradores os Professores José Maltez, Sandra Balão e Marcos Farias Ferreira.
A participação, via Zoom, é livre, mas sujeita a inscrição prévia aqui. Juntem-se a nós na análise a este momento delicado da segurança europeia e mundial.
A resistência ucraniana e o bluff de Putin
Hoje, no Observador, um artigo meu com uma análise neo-realista sobre a resistência ucraniana e o bluff de Putin a respeito da utilização de armas nucleares.
Importa ainda salientar que, desde o início do conflito, subsiste aparentemente um motivo para as potências ocidentais não intervirem directamente com forças militares convencionais no teatro de guerra: a posse de armas nucleares por parte da Rússia. É o receio de uma escalada conducente a uma guerra nuclear que está nas mentes dos decisores políticos, bem como nas de muitos comentadores, especialmente após a ameaça, por Putin, de consequências nunca vistas na nossa história. Ora, a ameaça implícita de utilização de armas nucleares por Moscovo não é credível. Primeiro, porque, como mencionado acima, os Estados são actores racionais e estratégicos que têm como objectivo primário a sua própria sobrevivência e as armas nucleares só são úteis para efeitos ofensivos se apenas um dos lados num conflito as detiver. Segundo, porque retém validade a brilhante análise de George Kennan no seu Long Telegram (1946) e em The Sources of Soviet Conduct (1947), que esteve na génese da doutrina da contenção do expansionismo soviético. Conforme salientou o eminente sovietólogo, o Kremlin é “Impermeável à lógica da razão e altamente sensível à lógica da força. Por esta razão, pode-se retirar facilmente – e geralmente fá-lo quando encontra uma forte resistência em qualquer ponto.” Assim foi aquando das crises dos Estreitos Turcos e do Irão, logo em 1946, mas também no restante período da Guerra Fria, quando os EUA já não detinham o monopólio das armas nucleares.
Isto significa que o cálculo da utilização de armas nucleares não é tão linear e automático como muitos comentadores e políticos pensam, talvez influenciados pelo clássico de Stanley Kubrick Dr. Strangelove. Trata-se de uma tecnologia eminentemente defensiva e quando dois lados em confronto a detêm, ao invés de poder contribuir para uma escalada, pode precisamente levar ao término das hostilidades. Quando a sobrevivência de um dos lados é colocada em causa pelo recurso a esta tecnologia, devido à garantia de retaliação, deixa de fazer sentido utilizá-la – era nisto que assentava a doutrina da Mutual Assured Destruction (MAD).
Putin está ciente disto e acredita que os Estados ocidentais não intervirão militarmente na Ucrânia devido ao receio de uma escalada para um confronto nuclear. Talvez esteja na altura de o Ocidente ser imprevisível e surpreender Putin com o que para este é improvável, revelando o seu bluff. Seria um golpe de mestre que rapidamente o obrigaria a suspender as hostilidades e a sentar-se à mesa das negociações antes que o seu regime colapse.
A Ucrânia é aqui
Escreveu Montesquieu que “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites”. É assim tanto no plano doméstico dos Estados como na política internacional, onde, na última década, um Ocidente em turbulência não tem conseguido lidar devidamente com o bully-in-chief de uma cleptocracia apostada em fragmentar as democracias liberais. Como se não bastasse a inépcia dos líderes Ocidentais, o chefe do Kremlin ainda é aplaudido à saciedade por idiotas úteis beneficiários do conforto e das liberdades da civilização ocidental e da geografia que lhes calhou em sorte. Quem louva a violação, por uma potência revisionista e agressiva, dos dois princípios basilares da ordem vestefaliana, a soberania e a não-ingerência, ignora a história (mesmo que Putin não seja Hitler ou Estaline) e não compreende que o expansionismo russo ameaça a ordem internacional sobre a qual repousa o nosso modo de vida. A Ucrânia é aqui ao lado e não colocar limites a Putin é franquear ainda mais as portas da segurança europeia e transatlântica.
Sobre a noite eleitoral
O PS esvaziou os partidos de esquerda (BE e CDU), porventura penalizados pelo chumbo do orçamento conducente a uma crise política em plena crise pandémica e económica, e os novos partidos de direita erodiram a direita histórica. Uma direita com um partido (PSD) tomado por um proto-autoritário que pretende controlar a justiça e a comunicação social e navega ao sabor do vento no que diz respeito a coligações com a extrema-direita, e outro (CDS) a morrer nas mãos de um adolescente tardio que julga liderar uma associação de estudantes e se insurge contra espantalhos como o marxismo cultural e a direita fofinha dos salões do Príncipe Real. Ambos abriram espaço para o crescimento de um partido racista e xenófobo (CH) e de outro (IL) alicerçado num libertarianismo yuppie. Temos assim uma direita ideologicamente mais vincada e purista, organizacionalmente escaqueirada e orfã de quem a federe. Perante lideranças incapazes e um crescente radicalismo ideológico à direita, e um comportamento irresponsável à esquerda do PS, sendo as eleições ganhas ao centro, é natural que os eleitores que oscilam entre PS e PSD tenham decidido reforçar o PS. Isto significa um certo conservadorismo em relação à preservação do regime democrático, do Estado Social, do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública. Ou seja, aquilo que foram conquistas do liberalismo, do conservadorismo, da democracia cristã e da social-democracia no pós-II Guerra Mundial. Quando perceber isto e se deixar de aventureirismos, talvez a direita consiga voltar a ganhar eleições.
Menos estadão, mais liberdade
O Expresso perguntou a 12 jovens os seus desejos para 2022. Aqui fica o meu;
Menos estadão, mais liberdade
Quando os políticos nos tentam fazer crer que a mera delegação de competências administrativas nos municípios equivale a um processo de descentralização, concluímos que o Estado-aparelho de poder hierarquista, centralizador e habituado a mandar de cima para baixo continua a subjugar-nos.
Falta cumprir-se, como escreveu Alexandre Herculano, “a administração do país pelo país (…) realização material, palpável, efetiva da liberdade na sua plenitude”.
Sob pena de continuarmos enredados num debate em que se confunde deliberadamente descentralização com deslocalização e delegação de competências administrativas, torna-se desejável e necessário um sobressalto cívico que contribua para uma discussão esclarecida e conduza a um verdadeiro processo descentralizador, feito de baixo para cima. É preciso que se criem níveis intermédios de governação que tornem o sistema político mais representativo e participativo, concretizando o princípio da subsidiariedadsubsidiariedade e aproximando a decisão política das comunidades locais.
A plena liberdade poderá ser realizada pela descentralização política por via da regionalização, implicando necessariamente a reforma do actual sistema eleitoral de uma democracia sem povo, onde este é apenas chamado a ratificar as listas feitas à porta fechada pela partidocracia. Para romper com o excessivo domínio da vida pública pelos partidos, que, como também assinalava Herculano, carecem da centralização para preservar o poder, urge que a sociedade civil seja capaz de se mobilizar e de os pressionar.
O estadão a que chegámos não é nem tem de ser o fim da história.