Artigo publicado no Pacta Sunt Servanda, Outubro de 2008, e também no Estado Sentido
Faltavam cerca de 24 horas para o início dos Jogos Olímpicos de Pequim, que assinalaram a crescente afirmação chinesa enquanto potência mundial, quando se principiou um dos fenómenos mais marcantes dos últimos anos em termos de política internacional. Depois de no dia 7 de Agosto as forças separatistas da Ossétia do Sul (que vinham desde há algum tempo a causar incidentes como forma de inviabilizar um alegado acordo entre a Federação Russa e a Geórgia quanto à desistência desta última da ambição em fazer parte da NATO), e as forças georgianas concordarem com o cessar-fogo e em iniciar conversações mediadas pela Rússia, o herói da chamada Revolução Rosa e Presidente georgiano Mikhail Saakashvili prestou-se a ordenar o ataque da posição das forças ossetas chegando até à capital da Ossétia do Sul, Tskhinvali, onde obteve um parco controlo que pouco tempo depois viria a ser contrariado pelo massivo dispositivo militar russo enviado para a região.
Nos dias seguintes assistiu-se a uma ocupação de pontos chave no território georgiano por parte da Rússia, a que se juntaram as declarações unilaterais de independência não só da Ossétia do Sul como de outra região separatista, a Abkhazia, numa zona do globo já de si perpassada por diversos conflitos separatistas originados desde o colapso do bloco soviético, enquanto o Presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush, assistia ao início dos Jogos Olímpicos, e os europeus se prestavam a tentar mediar um acordo de cessar-fogo principalmente através da acção de Nicolas Sarkozy, Presidente francês na qualidade de Presidente rotativo da União Europeia.
Parece-me apenas evidente que norte-americanos (especialmente George W. Bush e a sua ânsia expansionista) e europeus são em grande parte culpados pela situação em que se viram os georgianos que provavelmente não estavam à espera de tamanha passividade dos seus alegados aliados, demonstrando Saakashvili uma certa ingenuidade ao agir de forma algo irresponsável, característica por que se pautaram também aqueles que o vinham incitando a desafiar a Rússia e não lhe souberam dar suporte efectivo quando necessário.
Esta questão levanta uma das mais prementes observações sobre os líderes políticos ocidentais, a inexistência de verdadeiros líderes na acepção da palavra, isto é, dos grandes estadistas de outros tempos. Ao que parece já ninguém no Ocidente está preparado para este jogo, em grande parte convencidos da inevitabilidade da expansão das democracias liberais e habituados à legitimidade moral proveniente desse conceito que se reflecte nas premissas do que norte-americanos e europeus desejam. Habituámo-nos a tratar da cooperação para o desenvolvimento, da integração, do comércio internacional, tomamos a paz como garantia universal e quase sem nos apercebermos parece que nos esquecemos dos ensinamentos quanto ao estudo de conflitos, percepções e acções estratégicas.
Putin e a Rússia mais de Putin do que de Medvedev não esqueceu e a demonstrá-lo está a retórica utilizada para justificar a acção russa. Gostemos ou não, Vladimir Putin é provavelmente um dos líderes mais inteligentes da actualidade, uma reminiscência da centelha que iluminou os espíritos dos grandes estadistas do passado, pelo menos do século XX. Conseguiu de certa forma paralisar todo o Ocidente utilizando a própria retórica ocidental de protecção dos direitos humanos, dos seus cidadãos e da auto-determinação dos povos ao reconhecer a independência da Abkhazia e da Ossétia do Sul (algo que já era esperado e que norte-americanos e europeus não deveriam ter legitimidade para contestar se atendermos ao precedente aberto pelo caso do Kosovo sob pena de se apresentarem como algo hipócritas, como tem vindo a acontecer com a tentativa de Condoleeza Rice em mostrar que são alegadamente situações diferentes), demonstrando ainda que a Rússia está bem e recomenda-se, a fazer lembrar cada vez mais os grandes cenários de equilíbrios geopolíticos montados e percepcionados de parte a parte durante a Guerra Fria, acepção que tem ensombrado as relações entre Estados Unidos e Rússia ao longo do impasse verificado em termos de resolução do conflito, cumprimento do cessar-fogo e retirada das tropas russas.
A entrada da Geórgia na Aliança Atlântica parece ter ficado mais longe com o aviso por parte de Putin e Medvedev de que a Federação Russa é uma potência mundial e já não um império desmoronado. Tal como a Alemanha, a Rússia demonstra que é uma daquelas nações destinadas a reerguer-se das cinzas, desta feita pela acção de Vladimir Putin ao estabilizar politicamente e organizar estrategicamente um imenso país que tem vindo a beneficiar do aumento dos preços de petróleo e gás. A Rússia será sempre um portento internacional, a sua própria dimensão é a causa da sua propensão para actuar enquanto agente estabilizador nos territórios próximos das suas fronteiras, o seu espaço vital geopolítico, tal como o continente americano o é para os Estados Unidos da América.
As sucessivas tentativas de redução do espaço de influência russo nas suas fronteiras através do aliciamento desses países a fazer parte de organizações como a NATO em conjunto com a teimosia norte-americana em instalar um sistema de defesa anti-míssil na Europa de Leste só têm contribuído para um crescente mal estar no diálogo entre Washington e Moscovo, fruto talvez de uma certa visão norte-americana de um mundo unipolar com os Estados Unidos como potência directora, que é cada vez menos o mundo em que vivemos tal como o próprio Presidente Medvedev alertou em entrevista aos canais de televisão russos no dia 31 de Agosto ao afirmar que “o mundo tem que ser multipolar” e que “não podemos aceitar uma ordem mundial na qual todas as decisões são tomadas por um lado, ainda que um tão sério e importante como os Estados Unidos da América. Tal ordem é desequilibrada e comporta conflitos iminentes”, o que o eminente editor da Newsweek, Fareed Zakaria, já tinha afirmado na Foreign Affairs no artigo “The Future of American Power- How America Can Survive the Rise of the Rest.”
Como conclusão parece-me salutar lembrar as palavras de Ari Shavit que em artigo no israelita Haaretz a 14 de Agosto afirmou que “o dia 8 de Agosto, dia em que os Jogos Olímpicos começaram e se iniciou o conflito na Geórgia, será não menos recordado do que o 11 de Setembro de 2001. Quando a história do século XXI for escrita, irá ver esta passada semana como a semana que simboliza o ressurgir de duas novas potências mundiais: China e Rússia. Passarão décadas até que a China ultrapasse economicamente os Estados Unidos. Passarão anos até que a Rússia volte a ser uma potência Czarista. Mas o dia 8 de Agosto marcou o caminho. A questão não é que tipo de mundo nos espera. A questão é quão rapidamente chegaremos lá.”