Artigo publicado no Fórum Covilhã, 28 de Novembro de 2017.
Recentemente, num workshop sobre a temática “Direitos Humanos e Migrações”, que teve lugar na Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, vários oradores deixaram patente a ideia de que há falta de imaginação política para ultrapassar o que consideram ser o redutor enquadramento político do Estado-nação. A respeito do conceito de Estado-nação, não entrando em teorizações que aborreceriam o preclaro leitor, limito-me a salientar que poucos são os Estados em que se verifica realmente a concepção de Estado-nação enquanto um Estado que corresponde a uma nação. Portugal é um dos poucos países em que isto se verifica. Ao mesmo tempo, é também um país onde grassa uma certa falta de imaginação política, a que o facto de ser não apenas um autêntico Estado-nação, mas também um Estado unitário em que o poder político se encontra altamente centralizado, não será alheio.
Afinal, a partir de São Bento e do Terreiro de Paço é governado um país em que não existem órgãos políticos intermédios entre o governo central e o poder local e em que imperam os partidos políticos cartel, na classificação de Richard Katz e Peter Mair, ou seja, partidos que capturaram o Estado e os seus recursos e através destes se financiam sem necessitarem da sociedade civil, sendo boa parte dos seus membros políticos profissionais. Obviamente, quem depende financeira e profissionalmente do exercício da actividade política não abdica voluntariamente de posições de poder. Não surpreende, portanto, que se encontrem nos principais partidos políticos portugueses os mais aguerridos resistentes a propostas de reforma do sistema eleitoral que o pretendem tornar mais representativo e aberto à sociedade civil e a propostas que visem descentralizar o poder político exercido a partir da capital.
Em relação a estas últimas, a argumentação dos que se opõem à regionalização, federalização ou outras soluções mais imaginativas passa, invariavelmente, pelo facto de sermos um Estado-nação sem problemas como os que se verificam em Estados que albergam várias nações (ex.: Espanha) e também por termos um território de reduzida dimensão. Este último argumento é facilmente refutável, pois a dimensão do território não é critério para obstar à fragmentação do poder político como forma de evitar concentrações de poder que possam ser demasiado perigosas para o cidadão, uma ideia defendida por autores tão diversos quanto Joseph Proudhon, Lord Acton ou James Madison. Basta atentar nos exemplos da Suíça, Áustria, Bélgica, Bósnia Herzegovina, ou até a Alemanha, federações com territórios reduzidos se comparados com outros exemplos que os acima mencionados opositores costumam referir, como os EUA, a Rússia ou o Brasil, ou até considerar outros países em que as regiões administrativas são particularmente importantes no sistema político e detêm elevados níveis de autonomia, como acontece nos casos de Espanha, França ou Itália.
Reunimos assim três factores – um autêntico Estado-nação, um Estado unitário com o poder político altamente centralizado e partidos cartel – que talvez ajudem a explicar algumas características da nossa vida colectiva corporizadas em dois episódios recentes, nomeadamente, a colonização da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) pelos partidos políticos, que aí colocam pessoas sem competências na respectiva área de actuação, o que ficou patente durante o combate aos incêndios no decorrer deste ano, com as trágicas consequências que se conhecem, e a candidatura da cidade do Porto, em detrimento de Lisboa, a acolher a Agência Europeia do Medicamento (AEM), em resultado da contestação por parte do Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, a uma decisão que já havia sido aprovada por unanimidade na Assembleia da República.
O primeiro exemplo é ilustrativo da captura do Estado pelos partidos cartel, que conseguem até politizar e partidarizar instituições e órgãos de carácter eminentemente técnico e especializado. O segundo exemplo ilustra a recorrente contestação do Porto ao poder central de Lisboa, um fenómeno com raízes históricas, mas a que o restante país parece permanecer alheio. Acontece que, após ser conhecida a decisão de transferência da AEM para Amesterdão, Rui Moreira se mostrou contente com a mudança da sede do Infarmed para o Porto, uma decisão precipitada e anunciada de forma atabalhoada pelo governo do PS enquanto prémio de consolação. Ora, o governo até poderia transferir todos os Ministérios para o Porto que ainda assim o governo permaneceria centralizado. E até poderia dispersar cada Ministério por uma capital de distrito, e ainda assim o governo também permaneceria centralizado, passando apenas a encontrar-se desconcentrado.
O governo central pode e deve permanecer em Lisboa. O que importa é criar múltiplos níveis de governação que descentralizem o poder político, através dos quais o sistema político possa ser mais representativo e participativo, procurando concretizar eficazmente o princípio da subsidiariedade. Desta forma, talvez se consiga combater a tão propalada desertificação do interior do país, talvez se consiga acabar com o problema das colocações de professores que torna o início dos anos lectivos um martírio e talvez deixem de acontecer situações como a da Universidade da Beira Interior ser a universidade nacional que menos verbas do Orçamento do Estado recebe por aluno porque um Ministério em Lisboa decide que o critério para o financiamento das universidades é o da antiguidade.
Alguns dirão que a regionalização ou federalização apenas criaria mais instituições políticas a serem capturadas pelos partidos. Ora, não há democracia liberal sem partidos políticos. Mas é possível diminuir o grau de centralização do poder e aproximá-lo das comunidades locais, dando-lhes a possibilidade de resolverem os seus problemas localmente sem estarem sujeitas a um pesado e, frequentemente, lento aparelho estatal.
Na actualidade, na história e na ciência política, não faltam exemplos de formas de fragmentar o poder político, de o descentralizar e de concretizar o princípio da subsidiariedade. Mais do que a imaginação, na esfera doméstica ou na internacional, o que falta, amiúde, é a vontade política.